Mercadores da Noite #47 - Compliquês

3 de março de 2018
Como está o seu inglês?

Mercadores da Noite

Caro leitor,

Às vezes alguns leitores me questionam sobre o excesso de termos em inglês que uso em minhas crônicas. Chegam a insinuar que se trata de pura afetação. Outros reclamam que não conseguem entender o significado.

Vou dedicar este texto para explicar algumas expressões em inglês usadas no mercado financeiro em quase todo o mundo, inclusive no Brasil.

Um exemplo clássico é bull market e bear market, representando respectivamente mercado em alta e mercado em baixa. Para isso, vou recorrer a um trecho de meu livro “Os Mercadores da Noite”:

“Quando, em janeiro de 1848, James W. Marshall descobriu ouro na Califórnia, aventureiros de todo o país correram para a região. Um ano depois, os garimpeiros podiam ser contados às dezenas de milhares, acomodados em cidades improvisadas.
    

Era preciso alguma coisa para divertir aquela multidão de homens rudes. Surgiram então as touradas, que os mexicanos, vindos do sul, haviam herdado de seus colonizadores espanhóis. Mas a luta entre o homem e o touro não foi suficiente para agradar aos garimpeiros. Queriam algo mais violento, menos previsível, uma luta igual em que pudessem apostar. Os touros foram então aproveitados para lutar contra ursos, encontrados em abundância no norte do estado.
      
A nova luta foi um sucesso. Durava apenas alguns minutos. Terminava, invariavelmente, com a morte de um dos participantes. Algumas vezes, o touro, com um rápido movimento da cabeça para cima, perfurava com os chifres o peito do adversário. Em outras, o urso, com uma violenta patada para baixo, esmigalhava o crânio do inimigo. O touro sempre atacava para cima. O urso, para baixo.
        
Veio dessa época o hábito de chamar de touros as pessoas que apostavam na alta dos mercados, pois estão jogando na expectativa de um movimento para cima. Por outro lado, ursos são os que apostam no movimento para baixo. Bull market é o mercado do touro, para cima. Bear market é o mercado do urso, para baixo.”

Acontece que, aqui no Brasil, os traders usam os termos “altista” e “baixista”.
       
Jamais vi alguém falar: “Estou ‘tourista’ para o mercado. Com a nova redução da taxa Selic, a bolsa vai subir.”
     
Mas às vezes preferem mesmo a expressão em inglês. “Estou bullish para o mercado de ações.” “Estou bearish para o ouro.”

Assim como usam o inglês para inúmeras outras situações.
      
“O mercado abriu com um gap (cotação acima da máxima da véspera se for um gap para cima; abaixo da mínima da véspera se for um gap para baixo)."
    
Nunca ouvi ninguém dizer: “O mercado abriu com um hiato (que seria o gap).”
      
Não raro, sofisticam: “O mercado abriu com um breakaway gap (gap – ou hiato – que dá início a uma nova formação gráfica) deixando para trás e para baixo todas as cotações anteriores se for um bullish breakaway gap e para cima se for um bearish breakaway gap.
       
Já senti que você, caro amigo leitor, se não for um adepto fanático do Ariano Suassuna ou do Aldo Rebelo, entendeu o espírito da coisa e percebeu que usar termos em inglês não é pedantismo nem jactância cultural de minha parte. É mercadês mesmo. Assim como existe o politiquês, o aeronautiquês, o medicinês, o jornalistiquês, o supremês (do Supremo Tribunal Federal, etc.).
      
Em minhas crônicas, assim como fui em minha vida profissional, sou como o médico que recomenda ao paciente: “Preciso de um eco-color Doppler de sua femoral esquerda.”
      
Ou como o comandante de um jato brasileiro em linha dentro do território nacional que instrui o copiloto: “Flaps down”.
     
Nem o Suassuna, se aviador fosse, diria: “Abas para baixo.”
      
Morreriam ele, o copiloto, os demais tripulantes e todos os passageiros.
     
Não raro os pilotos e operadores de mercado misturam as duas línguas: “Trem locado” é trem de pouso travado (locked landing gear). “Estopei”, em mercadês, é “fiz um stop”.
      
Se o Aldo Rebelo disser para o seu corretor: “Venda o Ibovespa Abril a 72.500 com parada a 72.800”, seu broker (oops, corretor), simplesmente não vai entender que ele está dando uma ordem com stop. Porque em mais de 50 anos de mercado e dezenas de milhares de ordens no lombo nunca vi ninguém usar “parada” em vez de “stop”.

Outros termos não são traduzidos do inglês para o português simplesmente por economia de tempo.
       
Não é melhor dizer “Compre essa call de Petrobras a um e trinta” do que falar “compre essa opção de compra de Petrobras a um e trinta”? Ou: “Shorteie essa put de live cattle a 35 cents com stop a 37!”?
     
Leiam e releiam a frase acima e vejam como ela mistura com incrível beleza as duas línguas, além de inventar uma terceira no “shorteie”, quem sabe uma homenagem à integração dos povos.

        

Você pode dizê-la num telefone grampeado que o espião, se não for um iniciado, jamais entenderá o que você ordenou. E, pensando bem, a coisa, se não houver essa orgia linguística, é complicada mesmo. Afinal de contas você está dizendo para seu corretor:
       

“Venda a descoberto o direito de vender dezoito toneladas métricas de bois gordos que eu não tenho e jamais terei por 35 centavos de dólar e recompre o direito de vender essas mesmas dezoito toneladas se o preço desse direito subir para 37 centavos de dólar.”
     
Ou então: “Compre euro dezembro MOC on a stop a um dois dois cinco dois.” Aqui a sua intenção é comprar em Chicago euros futuros para dezembro como se você estivesse vendido e fosse stopado. Esta compra só pode ser feita no último segundo de mercado (MOC – market on a close).
      
Só há um detalhe: Se falar explicadinho assim, além do cara apoplético na outra ponta da linha não entender absolutamente nada do que você disse, o mercado soará o gongo de fechamento antes de você terminar sua ordem, que mais parecerá o voto de um dos ministros do Supremo. Sim, aqueles que falam em 8.000 palavras aquilo que poderiam dizer em apenas três: “Acompanho o relator.”

Call, put, breakaway gap, stop, CT scan,  flaps up, flaps down, data venia (essa, como todo mundo sabe, é do juridiquês) são características das profissões mais chegadas a um compliquês, e não só dos mercados financeiros e dos escribas que sobre eles comentam.

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Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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