Mercadores da Noite #44 - Acorrentado

12 de fevereiro de 2018
Meio touro, meio urso

Mercadores da Noite

Caro leitor,
     
Houve uma época em minha carreira de trader nos mercados internacionais de derivativos que eu cometia tantos erros, mas tantos mesmo – quase tudo que eu comprava caía; praticamente tudo que eu vendia a descoberto subia −, que decidi fazer uma experiência diferente e, no mínimo, insólita, para avaliar minha capacidade operacional.
     
Dependendo do resultado desse teste, confesso, eu até abandonaria a profissão. Ou a profissão me abandonaria, o que viria a dar no mesmo.

Escolhi como laboratório de minhas análises o mercado futuro de Treasury Bonds, negociado naquela ocasião no pregão viva-voz da CBoT – Chicago Board of Trade. O ativo em questão também não foi uma escolha aleatória. Tratava-se de um dos mercados mais líquidos do mundo.

Como o contrato de Treasury Bonds é basicamente composto de tendências firmes e bem definidas — quando o FED dá início a um ciclo de taxas de juros, ele costuma mantê-lo por muitos meses, às vezes, por anos a fio —, considerei esse mercado o ideal para a minha experiência.

Decidi jamais ficar zerado. Ou seria touro, comprado nos Treasuries, ou urso, vendido neles a descoberto. Long ou short, tornou-se minha nova filosofia de trabalho.

Defini como lote padrão cinco contratos, cada um equivalente a 100 mil dólares. Pelos regulamentos que me impus, e que passei a obedecer cegamente, se eu, por exemplo, estivesse comprado em cinco contratos e quisesse sair da posição teria de vender dez e, por conseguinte, ficar short em cinco. Em cima do muro é que não poderia ser.

Hoje, passados mais de 30 anos desse teste singular, confesso que foi uma das fases mais curiosas de minha vida de operador de Futuros. E também das mais instrutivas. Foi nessa ocasião que aprendi a operar, e a respeitar, tendências. Na prática, eu me acorrentei ao mercado. Para inverter posições, passar de urso para touro, ou vice-versa, só se estivesse convicto de que os preços haviam virado, feito um movimento de reversão.

Até aquela época, sempre que carregava uma posição comprada muito lucrativa, eu saía apenas para preservar os lucros já obtidos, sem me importar em observar a tendência. Simplesmente por medo de perder o que já tinha ganho, que é um dos maiores defeitos de um profissional.

O mesmo acontecia quando eu estava short, surfando uma onda de baixa. Antes que ela se espraiasse, eu recolhia covardemente minha prancha para garantir meus ricos ajustes positivos.

Já na nova fase, a de laboratório, sempre que o mercado fazia novos highs, eu tomava isso como um sinal de força e não de preços caros. Afinal de contas, não seria louco de “shortear” um bull market, entrar na frente de uma locomotiva sem freios. Na outra ponta da linha, fizessem as cotações um novo low, eu respeitava a queda livre e me mantinha short.

Com o tempo, a coisa começou a ficar meio enfadonha, kafkiana, modorrenta. E não era para bocejar que eu tinha resolvido ser um trader profissional. Então resolvi sofisticar meu teste.

Como existem tendências de curto, médio e longo prazo, arredondei meu lote padrão para seis contratos e passei a operar dois deles como se fosse um scalper,um daytrader, negociando só o curto prazo, e estudando os gráficos intraday,dois no médio prazo, acompanhando os gráficos diários, e dois no longo prazo, observando os gráficos semanais. Sempre ignorando os fundamentos que atuam sobre os mercados dos títulos do Tesouro americano. No mais, continuei operando só tendências como qualquer grafista de carteirinha que se preze.

É evidente que, se eu ficava long em dois, por causa do intraday, short em dois, por causa do diário, e novamente short em dois, devido ao semanal, a resultante disso era um short de apenas dois contratos. Mas meu gerencial assinalava shortem quatro e long em dois.

In pectore, eu era um urso de chifres ou, na situação inversa — long em dois —, um boi com pele e garras.

Quando, por exemplo, o chairman do FED (naquela época era o Paul Volcker) estava prestando depoimento no Banking Committee do Senado americano, o intraday se movia para cima e para baixo o tempo todo, tal como nos dias de hoje. Naquelas oportunidades, minha posição de dois contratos reservada ao curto prazo não parava de dar ordens de compra ou venda.

Aconteciam situações inusitadas, e até mesmo hilariantes, em meio às palavras do chairman.

“A Reserva (era assim que ele se referia ao FED) está atenta à evolução dos preços das principais commodities…”.

Pronto! Os Treasury Bonds tendiam à queda, porque Volcker se preocupava com a inflação.

“…mas não acreditamos (o chairman prosseguia; penso que eles fazem isso por sadismo) que isso vá pressionar o CPI (Índice de Preço aos Consumidores, na sigla em inglês).”

Mais do que depressa, meu contrato invertia a tendência e minha posição de curto prazo também. Isso tudo no meio do depoimento, que eu ia lendo no lettering na parte de baixo do próprio monitor de cotações.

Algumas vezes, as três tendências, no decurso de um mesmo pregão, tomavam direção idêntica. Isso era uma festa para mim. No fechamento, eu ia para casa long ou short em seis contratos. Touro de chifres penetrantes ou urso de patada demolidora.

Essa fase de trading programado acabou me cansando. Afinal de contas, eu queria ser um trader com ideias próprias, e novas, a cada momento, e não um trend follower embolorado, qual um estúpido robô. Além disso, tinha voltado a ganhar alguma coisa nos demais mercados.

Decretei o fim dos testes em Treasury Bonds. Zerei tudo e fui cuidar dos demais ativos.

O caro amigo leitor deve estar se perguntando:

“Tudo bem, mas qual terá sido o resultado financeiro da fase piloto automático?”

Com toda a honestidade, confesso que não me lembro. Mas aposto que saí no zero a zero. Ou, mais provavelmente, perdi ou ganhei uma merreca.

Se tivesse perdido muito, não teria me esquecido do placar final da experiência.

Se tivesse ganhado uma nota, estaria dançando o meu ‘dois pra lá, dois pra cá’ nos T. Bonds até os dias de hoje.

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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