Caro leitor,
Quando, em outubro de 1966, voltei de Nova York para o Brasil, fui trabalhar como operador de pregão na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Na época, a maior parte das ações era ‘ao portador’ e não havia nenhuma central de liquidação. Fechados os negócios na Bolsa, no dia seguinte um office boy da corretora vendedora levava as cautelas dos títulos vendidos para o escritório do comprador. Entregava os papéis e recebia um cheque.
Como alguns corretores volta e meia pagavam com cheques sem fundo, a gente evitava vender para esses caras.
“Vendo a 40”, apregoava um dos ‘suspeitos’.
“Vendo a 41”, berrava outro ao lado dele.
“Fechado!”, eu comprava do ‘Vendo a 41’.
Quando o movimento era grande, e havia muitas cautelas a serem entregues, a gente contratava um burro sem rabo, aquela carroça fina e comprida, de apenas duas rodas, conduzida no muque por um carregador. Pois bem, o ‘piloto’ do burro sem rabo ia na frente, puxando a carroça, e o boy seguia ao lado, vigiando a carga. Não raro, transportavam fortunas, o que seria inadmissível nos dias de hoje, quando até carros-fortes são assaltados.
Mas não eram só ações os papéis liquidados fisicamente. Como não havia SELIC nem CETIP, e muito menos transações e custódias eletrônicas, os títulos do governo federal (ORTNs) e estaduais (ORTEs) também eram ‘ao portador’ e liquidados fisicamente, cautelas contra cheques. O mesmo ocorria com as letras de câmbio e CDBs.
Nas grandes liquidações desses títulos de renda fixa, estatais e privados, não havia essa de office boy e muito menos de burros sem rabo. Quem liquidava mesmo eram os operadores e até mesmo os diretores das instituições, não raro entre o Rio e São Paulo, ou mesmo BH, Porto Alegre e outras capitais.
Era um risco tremendo. Um lote de ORTNs podia equivaler a várias vezes o capital de uma instituição. E, sendo ‘ao portador’, perdeu, perdeu.
Na quarta-feira 12 de abril de 1972, um bimotor turboélice da VASP, prefixo PP-SMI, cumprindo um dos voos regulares da ponte aérea Rio-São Paulo, decolou de Congonhas para o Santos Dumont às 20h30. A bordo, quatro tripulantes e 21 passageiros, entre eles um conhecido meu, operador do Citibank. Ele levara um cheque para São Paulo e voltava com um lote de obrigações do Tesouro em sua pasta.
As condições meteorológicas eram excelentes e jamais se soube (a aeronave não dispunha de caixa-preta) exatamente por que o avião se chocou contra o topo de uma montanha no distrito de Secretário, município de Petrópolis, fora da rota de aproximação do Santos Dumont, onde o Samurai deveria ter pousado por volta das 21h30.
Os destroços foram localizados só na tarde do dia seguinte, por um helicóptero do PARASAR. De cima, dava para se ver que era impossível haver sobreviventes, mesmo porque o avião explodiu e foi consumido pelo fogo após o impacto.
Já devastada pela quase certa perda de seu funcionário, a direção do Citi nutriu esperanças de encontrar a pasta com as ORs. Contratou às pressas uma equipe de montanhistas que, acompanhada de agentes de segurança do banco, chegou ao local da queda na madrugada de sexta-feira, dia 14 de abril.
Nada. Com exceção da cauda do Samurai, o resto se transformara em cinzas, fragmentos de metal retorcido e ossos carbonizados. Evidentemente, o banco aguentou o tranco financeiro, insuficiente para abalar seus sólidos alicerces patrimoniais, embora a perda das ORTNs tenha feito um estrago no balanço trimestral. Sendo ao portador, perdeu, perdeu.
Só papel
Na sede de uma grande corretora do Rio, dealer do Banco Central, sumiu um lote de cautelas de ORTNs de enorme valor. Os papéis simplesmente desapareceram da custódia. Depois de procurar por todas as mesas, gavetas, armários, cestas de papel usado, o pessoal vasculhou a central de lixo do prédio. Nada. No desespero, foram ao centro receptor de lixo da Comlurb. Nada vezes nada.
Embora tivessem os números das cautelas desaparecidas, não havia como o Tesouro emitir substitutas. Foi preciso que se aprovasse no Congresso Nacional uma lei específica para o caso e mesmo assim a corretora só pôde recuperar o prejuízo algum tempo após o vencimento dos títulos, quando ninguém se apresentou para receber o valor. Foram meses e mais meses de sofrimento até o desfecho do episódio.
Eu também tive minha vez. Como sócio e diretor da Fator Corretora de Títulos, costumava viajar muito para liquidar operações de grande porte. Ia bastante a Belo Horizonte comprar Letras do Tesouro de Minas Gerais, que trazia comigo na volta. E no mínimo umas duas ou três vezes por mês fazia a mesma coisa em São Paulo. E foi vindo de lá que minha carreira quase foi para o vinagre.
Com uma pasta cheia de cautelas graúdas de ORTNs, embarquei num Avro da ponte aérea no fim da tarde em Congonhas. Chegando ao Rio, fui para o meu apartamento em Ipanema. Jantei, assisti televisão e fui dormir. Acordei no meio da noite dando um soco em minha própria testa.
“Minhas ORs!”
“Minhas ORs!”, minha mulher não entendeu nada quando me vesti num minuto e desci para a garagem. “Minhas ORs”, foi a única explicação que dei.
Fui de moto para o aeroporto. Seria uma boa maneira de me suicidar na volta, lançando-me contra um daqueles postes enormes do Aterro do Flamengo.
Para minha sorte, o Avro pernoitava no Santos Dumont. Como meu documento de identidade era do Ministério da Aeronáutica, assim como o de qualquer piloto, consegui passar pelo portão que dá acesso ao pátio de manobras e fui até o hangar da Varig, onde estava o avião. Debaixo de meu assento, a pasta com as ORs, intocada.
Com a valise sobre o tanque de combustível, presa entre meus joelhos, voltei para casa a vinte por hora. Evidentemente que não contei nada para ninguém no escritório na manhã seguinte.
Às vezes até acho graça quando, hoje, as pessoas falam dos riscos do mercado. Arriscado mesmo era quando a gente carregava o capital da empresa num burro sem rabo, num avião em chamas ou equilibrando-o precariamente no ‘lombo’ de uma Honda 750 c.c.Você gostou dessa newsletter? Então escreva para mim contando a sua opinião no isantanna@inversapub.com. Aproveite e encaminhe para os seus amigos este link.
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Ivan Sant'Anna