Mercadores da Noite #312: Americanas: a bola (murcha) da vez

21 de janeiro de 2023
Na coluna Os Mercadores da Noite da semana passada, cheguei a pensar em escrever sobre a crise das Americanas, que eclodiu de repente no mercado. Para estudá-lo melhor, adiei o tema para esta semana.

Olá, leitor(a),

Na coluna Os Mercadores da Noite da semana passada, cheguei a pensar em escrever sobre a crise das Americanas, que eclodiu de repente no mercado.

Sim. De repente. Caso contrário, o tombo das ações na B3 seria ao longo de diversos pregões, e não 77% de uma só vez.

Para estudá-lo melhor, adiei o tema para esta semana

Quando eu era menino, na década de 1940, minha mãe me levava de bonde ao centro da cidade do Rio de Janeiro para fazer compras. Descíamos no terminal do Tabuleiro da Baiana, no largo da Carioca, onde começa (ou termina) a rua Uruguaiana.

A Loja dos Dois Mil Réis, como era conhecida (não sei se era chamada assim, ou se o nome oficial já era Lojas Americanas), não vendia nada acima desse preço e comercializava bugigangas.

Tinha duas portas de entrada (ou saída): uma na Uruguaiana; outra na Gonçalves Dias, esta, próxima à mítica Confeitaria Colombo.

Para quem quisesse tomar um milk shake, a Lojas Americanas era o lugar ideal. Como era o ideal para se comprar uma tesourinha de unhas ou um vidrinho de esmalte, só para para ficar em três exemplos.

Os donos eram quatro americanos, John Lee, Glen Matson, James Marshall, Batson Borger e um austríaco, Max Landesmann.

A loja era uma cópia fiel da cadeia americana Woolworth, inclusive o slogan (lá nos Estados Unidos, tudo por cinco (nickel) ou dez (dime) centavos).

Muitos anos mais tarde, quando a inflação galopante brasileira começou a se transformar em hiperinflação, o trio Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Hermann Telles, que detinha o controle acionário do banco Garantia, se interessou pelas Lojas, agora uma cadeia espalhada por todo o Brasil.

A razão pela qual eles fizeram a compra era o float. Para quem não sabe, esse termo designa o valor em caixa que permanece, sem ônus, por determinado período de tempo em poder de uma pessoa física ou jurídica.

Sendo águias do mercado, Lemann, Sicupira e Telles compravam, por exemplo, nas semanas que antecediam a Semana Santa, dezenas de milhares de ovos de Páscoa por mil cruzeiros ou cruzados (lembrem-se que estamos falando em tempos de hiper e de reformas monetárias, com mudanças de moedas) cada um, para pagar em 90 dias ao fabricante.

Imediatamente, as Americanas vendiam os chocolates por, digamos, Cr$ ou Cz$ 850, realizando um prejuízo de mentirinha e derrubando os concorrentes.

O dinheiro era aplicado no open ou over. Ao final dos três meses valiam algo como 1.150 cruzeiros ou cruzados, estando nessa simplíssima engenharia financeira o lucro da transação.

Jorge Paulo, Carlos Alberto e Marcel logo expandiram seus negócios para outras atividades no país, sendo o mais badalado deles a compra da Companhia Cervejaria Brahma e posterior fusão com a Companhia Antarctica Paulista, fusão essa que resultou na criação da AmBev.

Não demorou muito e o Brasil ficou pequeno para a trinca. Vieram então, entre outras, as gigantes multinacionais Budweiser, Corona, Stella Artois, Kraft Food, H. J. Heinz, Burger King, não exatamente nessa ordem.

Nesses casos, a estratégia é sempre a mesma. Com dinheiro emprestado por bancos, chega um novo controlador na empresa e baixa os custos, inclusive demitindo funcionários, e aumenta a rentabilidade.

Esse tipo de operação praticamente conta com um manual, espécie de catecismo dos M & A (Mergers & Acquisitions – fusões e aquisições).

Só que veio a Covid-19, trazendo a reboque o fechamento de estabelecimentos comerciais, entre os quais bares e restaurantes (reparem bem: bares e restaurantes), além da inflação mundial.

Nos Estados Unidos, a taxa básica de juros praticada pelo FED (Federal Reserve System, o banco central americano) saiu da faixa 0,00% a 0,25% ao ano para os atuais 4,25% a 4,50% a.a., trazendo em seu rastro as demais taxas bancárias.

Covid + juros altos foi uma péssima combinação para quem alavancava, como era o caso da trinca brasileira.

 

 

* * *

Quando, em meados dos anos 1960, eu morava nos Estados Unidos, as grandes empresas simplesmente não tinham dono.

Quase ninguém sabia quem era o maior acionista, por exemplo, da General Motors, da Dupont ou da Xerox.

Se uma dessas companhias atravessasse uma crise, o nome dessa pessoa não atrapalhava outro empreendimento do qual ela também fosse sócia.

A era dos grande bilionários-celebridade, que já existira no final do século 19 e início do século 20, gente como John D. Rockefeller (Standard Oil), Cornelius Vanderbilt (ferrovias) e Henry Ford (Ford Motor Company), voltou com as empresas de tecnologia, boa parte delas iniciadas com um negocinho de fundo de quintal.

Quem não sabe que Microsoft é Bill Gates, Amazon, Jeff Bezos e Facebook, Mark Zuckerberg?

Quando o excêntrico Elon Musk, então o homem mais rico do planeta, se meteu a comprar o Twitter, perdeu inacreditáveis 200 bilhões de dólares. Pois aonde seus negócios vão, seu nome vai atrás.

Dessa sina, a trinca Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles não escapará, mesmo que um ou dois dos seus empreendimentos continuem sendo altamente rentáveis.

Em minha opinião, o melhor que devem fazer é se desfazer de tudo. Nessa hipótese, é bem provável que ainda sobre um bilhão de dólares para cada um deles.

Vai dar para o gasto.

Um ótimo fim de semana para todos,

Ivan Sant'Anna

 

Nota do editor: Pouco após o recebimento dessa crônica, as Americanas entraram com um pedido de recuperação judicial, que foi acolhido pela justiça. Suas ações seguirão sendo comercializadas, mas serão retiradas dos índices da B3 a partir da segunda-feira 23/01/2022.

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

A Inv é uma Casa de Análise regulada pela CVM e credenciada pela APIMEC. Produzimos e publicamos conteúdo direcionado à análise de valores mobiliários, finanças e economia.
 
Adotamos regras, diretrizes e procedimentos estabelecidos pela Comissão de Valores Mobiliários em sua Resolução nº 20/2021 e Políticas Internas implantadas para assegurar a qualidade do que entregamos.
 
Nossos analistas realizam suas atividades com independência, comprometidos com a busca por informações idôneas e fidedignas, e cada relatório reflete exclusivamente a opinião pessoal do signatário.
 
O conteúdo produzido pela Inv não oferece garantia de resultado futuro ou isenção de risco.
 
O material que produzimos é protegido pela Lei de Direitos Autorais para uso exclusivo de seu destinatário. Vedada sua reprodução ou distribuição, no todo ou em parte, sem prévia e expressa autorização da Inversa.
 
Analista de Valores Mobiliários responsável (Resolução CVM n.º 20/2021): Nícolas Merola - CNPI Nº: EM-2240