Mercadores da Noite #300: Recortes do passado

29 de outubro de 2022
Como será véspera das eleições presidenciais, e quase todos os cronistas estarão comentando o assunto, resolvi fugir do lugar-comum.

Olá, leitor(a),

Estou escrevendo este texto na quinta-feira 27 de outubro. No sábado, 29, ele será distribuído aos assinantes da Inv.

Como será véspera das eleições presidenciais, e quase todos os cronistas estarão comentando o assunto, resolvi fugir do lugar-comum.

Vou procurar, entre as newsletters Os mercadores da noite que escrevi de 2017 até hoje, alguns trechos das mais antigas e transcrevê-los aqui.

Começo pela recordação de uma recordação, um pequeno parágrafo da crônica Muito prazer, Ivan Sant'Anna.

“Na manhã de 11 de maio de 1977, meu patrimônio pessoal equivalia a aproximadamente cinco milhões de dólares de hoje. À noite, nesse mesmo dia, aos 37 anos de idade não me restara um centavo.”

Na newsletters O mercado tem razões que a própria razão desconhece, falei de uma das mais valiosas lições que aprendi em minha vida profissional:

Durante os anos nos quais operei apenas nos mercados internacionais (Chicago, Nova York e Londres) eu assinava uma newsletter escrita por Ted Arnold, um analista residente em Londres. Entre as muitas coisas que aprendi com ele, uma delas era o conceito de que ‘um mercado que reage bem a notícias ruins é um mercado forte’. O inverso também procede: ‘mercado que reage mal a notícias boas é mercado fraco’. Essas máximas sempre funcionam.

Na crônica O preço, uma das que mais gostei, escrevi:

Antes de mais nada, os investidores, operadores de mercado e gestores de fundos são eternos insatisfeitos. Se compram, por exemplo, determinado ativo a 13 e o mercado sobe para 14, 15, 16, 17 e eles liquidam a posição, ficam arrasados se a cotação continua subindo: 18, 19, 20, 21, 22 e assim por diante.

          ‘Eu sou uma anta, mão fraca’, o cara comenta. ‘Não podia ter saído a 17’, choraminga o profeta do passado.

          Mas digamos que nosso trader, num rasgo genial, comprou sua posição na mínima, a 13, e vendeu na máxima, a 22. Ele sai dando cambalhotas? Nada disso.

          ‘Comprei um lote muito pequeno’, o operador se tortura. ‘A posição poderia ter sido no mínimo três vezes maior.’

          Vamos agora imaginar que o cara seja uma fera e tenha aplicado todas as suas reservas naquele ativo abençoado. Fica feliz?

          Negativo.

          ‘Eu devia ter “shorteado” a 22 e surfado a queda’, corrói-se nosso herói.

Em Insider do óbvio, texto publicado em março de 2017, falei sobre algumas particularidades (para não dizer “indecências”) dos velhos tempos:

Hoje vou escrever sobre insiders, detentores de informações privilegiadas. Já houve épocas no mercado brasileiro que quem não fosse insider morria de fome. A gente nem usava essa expressão, insider. ‘Eu tenho uma barbada’, dizia um trader para o outro, singelamente. ‘Compre Amalgamated Mining que é bater em cego (em deficiente visual, vá lá). A Mining vai a vinte. Eles descobriram uma reserva de bauxita. Mas não diz pra mais ninguém. Fica só entre nós.’”

          Quando, dias depois, a Amalgamated anunciava a descoberta da bauxita, suas ações desabavam. Eram os insiders (vale dizer, quase todo mundo) vendendo ao mesmo tempo.

No artigo Os Trapalhões, relatei, com minhas desculpas pela redundância, uma da maiores trapalhadas de todos os tempos.

O jovem Nick Leeson (Nicholas William Leeson) trabalhava, na City de Londres, no back office da trading desk do Baring Bank que, em 1992, era o banco em atividade mais antigo do mundo. A instituição detinha inclusive as contas da família real da Inglaterra.

          Leeson era bom. Tão bom que foi enviado para a filial de Singapura, quando surgiram problemas na área de informática, problemas esses que ele resolveu num piscar de olhos.

          De seu posto no setor de apoio, Leeson dava pitacos para o pessoal da mesa, que negociava principalmente contratos futuros do índice Nikkei da bolsa de Tóquio. Como os palpites se revelaram lucrativos, Nick não demorou a ser promovido a trader.

          O que ninguém esperava é que Nicholas William Leeson se tornasse o melhor operador do banco. O lucro da mesa de Singapura, operando o Nikkei, era maior do que o das demais trading desks do banco somadas. Nada mais natural do que a diretoria, em Londres, relevar alguns pecadilhos de Leeson, como operar valores muito acima do limite que lhe era autorizado.

          ‘Deixa, deixa ele’, dizia, numa reunião da matriz na City, um diretor para o colega ao lado, pensando em seu bônus de fim de ano, fermentado no outro lado do mundo pelo novo gênio, naquela época com apenas 28 anos, um cara que acertava quase todas.

          Veio então o inesperado. No dia 17 de janeiro de 1995, houve um terremoto de grande magnitude na cidade japonesa de Kobe, que deixou 6.500 pessoas mortas e 25 mil desabrigadas, além de um prejuízo material de 132 bilhões de dólares. Esse tremor, que não poderia deixar de afetar o mercado de ações, colheu Leeson alavancadíssimo no lado comprado do Nikkei.

          O que fez ele? Ao invés de realizar o prejuízo, como seria o certo, partiu para o preço “mérdio”, comprando mais e mais contratos do Nikkei. Comprando morro abaixo, um dos maiores erros que um trader pode fazer.

          Para driblar os limites que o Baring tinha com a SIMEX (bolsa de futuros de Singapura), Leeson se valeu de um artifício. Pôs as compras na conta “erro”, de nº 88888, que, justamente por ter como finalidade a correção de erros, não tem teto operacional. Erro é erro, seja lá de quanto for.

          O Nikkei continuou caindo e o prejuízo do Baring se elevou a um bilhão e quatrocentos milhões de dólares. A fraude da 88888 acabou sendo descoberta e a notícia se espalhou.

          Enquanto as bolsas de valores de todo o mundo, com destaque para a de Tóquio, desabavam, Nicholas mal teve tempo de rabiscar um pedido de desculpas e pegar o primeiro avião para Londres. Não chegou lá. Foi preso em uma escala no aeroporto de Frankfurt. Devolvido a Singapura, cumpriu pena de prisão até 1999.

          O Baring Bank só não quebrou porque foi comprado pelo ING, holandês, pelo valor simbólico de uma libra esterlina.

Em Índice de suicídio, uma das newsletters mais prazerosas que publiquei, comecei com o seguinte trecho:

Em boa parte dos anos 1980 trabalhei em uma trading desk no Rio, na qual operava exclusivamente mercados internacionais, com destaque para as bolsas de futuros americanas. Nessa época, os traders de minha mesa tinham uma brincadeira que consistia na avaliação do índice de suicídio de cada um, feita pelo próprio e revelada aos colegas. Era meio molecagem, mas tinha alguns aspectos sérios. Mas, antes de falar sobre eles, deixem-me detalhar os “critérios técnicos” do índice, que variava de 0 a 10.

          Zero é, por exemplo, o índice de um bebê saudável, bem cuidado e cercado de carinho. Dez é o índice de um sujeito sentado no parapeito da sacada do 20º andar, já com o centro de gravidade próximo do ponto de não retorno.

          Quando alguém da mesa mergulhava numa sequência de trades perdedores, a gente perguntava:

          ‘E aí, cara, qual é o seu IS hoje?’

          ‘Tô mal, irmão. Calculo uns oito e meio. Tô rindo de desastre de trem.’

          Já a resposta de quem tinha cavalgado uma opção que decuplicara de preço a resposta era algo como:

          ‘Um vírgula dois. Não quero morrer de maneira nenhuma. Se o elevador tem mais de cinco pessoas, eu espero o próximo. Se o comandante do último Electra da ponte aérea não tem os cabelos grisalhos, eu desembarco, durmo em São Paulo e espero o primeiro voo da manhã seguinte. Estou ficando rico e não quero pôr tudo a perder com um piloto que acabou de sair do aeroclube’”

Em uma das próximas Os mercadores da noite enviarei mais alguns recortes do passado.

Um ótimo fim de semana para todos,

Ivan Sant’Anna.
 

Nota do Editor: Além de assinar a Mercadores da Noite, que sai aos sábados aqui e em podcast nas plataformas Spotify e Deezer etc., Ivan Sant'Anna também escreve todas as segundas, terças e quintas-feiras a coluna Warm Up PRO, que você pode conhecer clicando aqui!

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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