Mercadores da Noite #299: Ciranda da felicidade

22 de outubro de 2022
Hoje trago um conto, Ciranda da Felicidade, publicado na revista Veja em 1997. Por sinal, além do escritor José Saramago, fui o único que escrevi ficção para eles em todos esses anos.

Olá, leitor(a),

Como esta semana estou fazendo um checkup médico, escrevo esta crônica na quarta-feira, 19 de outubro, para ser publicada no sábado, dia 22.

Não é um texto inédito. Trata-se de um conto, Ciranda da felicidade, publicado na revista Veja em 1997. Por sinal, além do escritor José Saramago, fui o único que escrevi ficção para eles em todos esses anos.

* * *

Quando, em 1952, o presidente Getúlio Vargas transformou em estado o território do Alto Madeira a capital, Duas Pontes, era pouco mais que um amontoado de casas. Na época das chuvas, as ruas se transformavam em lamaçais quase impenetráveis.

          Durante a seca havia a poeira. E foi em meio a uma nuvem de pó que, alguns meses depois da criação do novo estado, um jipe da polícia militar atropelou e matou, na avenida principal, o pedreiro Ascendino Nascimento. Apurou-se que, por ocasião do incidente, o soldado que dirigia a viatura encontrava-se embriagado. A viúva de Ascendino, dona Edméia, entrou na justiça contra o estado.

          A ação se arrastou pelos tribunais, galgando penosamente cada instância. Só em 1965, 13 anos após o atropelamento, Edméia Nascimento obteve ganho de causa. Tarde demais! Já morrera, sem deixar herdeiros.

          Passaram-se mais três décadas, nas quais a mineração, pecuária e desflorestamento deram grande impulso ao Alto Madeira. A capital tornou-se um próspero centro de comércio.

Em meados de 1995, Celso Damasceno, sócio majoritário do Banco Esquema, desembarcou no moderno aeroporto de Duas Pontes. Acostumado a ambientes mais cosmopolitas sentiu-se um peixe fora d’água ao descer a escada do avião e receber no rosto o bafo quente e úmido que soprava da floresta, ao longe. Dirigiu-se à fila de táxis.

          - Palácio do Governo - comandou.

          Quando chegaram, Damasceno viu que uma multidão cercava o prédio, brandindo faixas e cartazes e gritando slogans contra o governador Teresiano Flores.

          - São os funcionários públicos - explicou o motorista. - Estão há seis meses sem receber.

          - Vai ser bem mais fácil do que eu pensa...

          - O quê, doutor?

          - Não, nada. Quanto é?

        Minutos depois, o governador Flores o recebia em seu gabinete. Apesar das janelas fechadas ouvia-se nitidamente o clamor do lado de fora.

          - Estamos falidos - gemeu a autoridade, elevando-se no assento e espichando o pescoço para observar o populacho. - Fa-li-dos! Para ser honesto, fiquei espantado quando seu banco, como é mesmo o nome, ah, o Esquema, nome estranho para um banco, nos ofereceu um empréstimo.

          - Bem, Governador. Não é propriamente um empréstimo. Nós queremos lançar no mercado títulos da dívida do Alto Madeira. Estivemos pensando em 100 milhões. O que o senhor acha disso?

          - Eu acho é que o senhor é completamente maluco. Não sabe que estamos proibidos de lançar novos títulos? Não sabe que foi justamente o endividamento que nos trouxe ao atual estado falimentar? Além disso, quem iria comprar os papéis, quebrados como estamos?

          - Não, Governador. Não sou maluco. Existe uma exceção prevista na Constituição de 1988. Os estados e municípios podem emitir títulos, desde que para pagar sentenças judiciais anteriores àquele ano. Os precatórios.

          - Preca o quê?

       - Precatórios, Governador. Quanto ao comprador para os papéis, eu já tenho, embora prefira manter seu nome em segredo. Mesmo porque o estado não irá vender diretamente para ele. Haverá uma série de intermediários antes de chegarem ao comprador final.  - Damasceno baixou o tom de voz, quase para um sussurro, obrigando o governador a se curvar para ouvi-lo. - São os laranjas - explicou, candidamente. - Um jargão técnico.

          - Ah, laranjas. Acho que já ouvi falar a respeito. Meu secretário de finanças... Bem, deixa pra lá.

          Damasceno sentia-se cada vez mais à vontade. Mas uma dúvida assaltou o governador.

          - De que me adianta pagar predatórios? Eu...

          - Precatórios, governador.

          - Pois é, precatórios. De que me adianta pagar precatórios? Eu preciso de dinheiro é para pagar o funcionalismo, empreiteiros, essas coisas.

          - Muito simples, governador. O senhor recebe o dinheiro e não paga os precatórios. Foi assim que os outros fizeram.

          Sua Excelência se interessou.

          - Outros? Quem, quem, meu jovem?

       - Bem, teve o governador..., o governador..., o pref... - Foi difícil ouvir os nomes, pois o alarido aumentara lá fora. - Eles também lançaram títulos por nosso intermédio. Apesar da franca evolução da conversa, Flores permaneceu na defensiva, para não se frustrar.

          - E quanto ao preço de venda? - perguntou. - Vocês vão querer um desconto enorme - arriscou, desconfiado.

          - Nem tanto, governador. Costumamos pagar 70% do valor dos títulos.

          O governador refletiu um pouco, levantou-se e fez sinal para que Damasceno o acompanhasse. Conduziu-o para dentro do banheiro do gabinete. Precavido, apertou o botão da descarga para abafar o som, caso houvesse um gravador plantado nas redondezas. Abaixaram-se junto ao vaso sanitário.

          - Pode pagar 60% - sussurrou o político, em meio à cachoeira -, e me devolver a diferença. - Sabe como é - prosseguiu -, as campanhas eleitorais...

          O banqueiro lançou-lhe um olhar terno de cumplicidade.

          - Entendo, governador. As campanhas eleitorais.

          Damasceno foi encaminhado ao secretário de Fazenda que, para sua grande surpresa, conhecia bem o aspecto cítrico da operação. O banqueiro retornou ao aeroporto, já com o número duma conta em Miami.

No dia seguinte, Damasceno almoçou com Amoroso Ponce, diretor do Fumicaço, Fundo de Pensão dos Funcionários da Açobrás. Eram amigos íntimos. Celso foi direto ao assunto.

          - O governador do Alto Madeira, Teresiano Flores, topou emitir uma série especial de 100 milhões para pagamento de precatórios. Ele vende a 60 e leva 10. Portanto o custo para o Esquema é de 70. Eu te vendo a 80 e nós rachamos o lucro de 10.

          Mas Amoroso não tinha o hábito de aceitar pacotes fechados. Gostava de arrematá-los com seu toque pessoal.

          - Sabe o que é, Celsão. Não fique chateado. Mas eu andei pensando. A média de idade dos funcionários da Açobrás é muito baixa. O grosso do pessoal só vai se aposentar daqui a 20 ou 30 anos. Aí, sim. A coisa vai explodir. Por enquanto a gente tem muita gordura pra queimar. Vamos fazer o seguinte: Eu pago 85, em vez de 80, e também fico com 10. A minha metade nos nossos 10 e mais esses cinco que estou pagando de... digamos, de ágio. Me sentiria mal se ficasse com menos do que o governador Flores. Você sabe. Uma questão de justiça.

As coisas se passaram como os cavalheiros haviam combinado. Mas não sem alguns obstáculos. Para desalento do governador, apurou-se que os precatórios anteriores a 1988 somavam não mais que 14 milhões.

          Mas o Esquema tinha um bom esquema. Seus advogados viajaram a Duas Pontes. Esmiuçaram velhos processos, retroagindo até o início do estado, na segunda época Vargas. Finalmente, para grande alegria de todos, descobriram a sentença, de 1965, que beneficiava dona Edméia Nascimento, concedendo-lhe indenização pela morte do marido, atropelado em 1952 pelo jipe da polícia.

          Foi a vez de novos técnicos, matemáticos, cibernéticos. E os cruzeiros de dona Edméia foram se multiplicando ao virarem cruzeiros novos, novamente cruzeiros, cruzados, cruzados novos, cruzeiros novamente, URVs e, milagre, 86 milhões de reais. Pronto! Quatorze mais 86: Os cem milhões de que precisavam.

          O Senado, com a complacência do Banco Central e pressionado pelos três senadores do Alto Madeira, aprovou a emissão dos títulos em regime de urgência urgentíssima.

Infelizmente houve o escândalo dos precatórios. O governador Teresiano Flores precisou usar e abusar de sua folgada maioria na Assembleia Legislativa para não ser impichado. A Açobrás abriu sindicância para apurar o caso, presidida, adivinhem por quem? Pelo próprio Amoroso Ponce. No Senado, a Comissão que apurou o caso enviou mais de uma tonelada de papéis para o Judiciário. E lá estão, na fila, muito atrás do Magri, dos Anões do Orçamento, dos outros.

          O único punido foi o Banco Esquema, que sofreu intervenção. Mas como foi o primeiro banco brasileiro a ser fechado tendo em caixa mais dinheiro do que devia, o interventor foi obrigado a pagar aos investidores. Entre eles a empresa Lavativas Internacionales, do próprio Celso Damasceno, com sede em Montevidéu, que se aproveitava duma legislação quentérrima do Brasil, as contas CC5, que permitiam que o dinheiro saísse frio e voltasse quente. Por isso, quando as coisas esfriaram, Damasceno foi pegar o seu de volta.

          Só muitos anos mais tarde, alguém fez surgir, como que por encanto, um descendente de Ascendino e Edméia Nascimento (com certidão de nascimento, carteira de identidade, CPF, assinatura e conta em banco) para receber a indenização, engordada por novos aprimoramentos. Bem, mas aí já é uma nova ficção.

Um ótimo fim de semana para todos,

Ivan Sant’Anna.
 

Nota do Editor: Além de assinar a Mercadores da Noite, que sai aos sábados aqui e em podcast nas plataformas Spotify e Deezer etc., Ivan Sant'Anna também escreve todas as segundas, terças e quintas-feiras a coluna Warm Up PRO, que você pode conhecer clicando aqui!

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Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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