Depois do pôr do sol

14 de março de 2022
Dinheiro é reserva de capital. Mas se ele pode virar pó do dia para a noite, sendo que certos países sabem que vão precisar de certas coisas, faz todo o sentido converter parte dessa reserva em algo que ninguém poderá tirar de você.

Caro(a) leitor(a),

Um dos principais erros na campanha de aterrorizar os ingleses com os bombardeios de Londres durante a Segunda Guerra, foi que o líder do grupo nazista achou que isso mataria o espírito daquele povo. A ideia era que as pessoas iriam se acovardar, vendo alvos aleatórios e civis sendo destruídos sem padrão.

Ninguém estaria salvo, todo mundo poderia ser um alvo. A receita para o caos.

Mas o contrário aconteceu. Como de forma insistente, parece ser uma função reativa do namoro com o olhar para o abismo, de Nietzsche: apesar do bombardeio constante, as pessoas, que no começo se escondiam, perceberam que, em geral, nada acontecia.

A chance de você ser vítima era ainda aleatória, mas começou a ser percebida como baixa: tudo mais constante, a chance de isso ocorrer comigo é quase zero, e Londres deixou de ser a planejada capital do desespero e virou um farol de coragem. Se você fosse cool, você ia viver sua vida da mesma forma como era antes. 

Talvez o pior ocorresse, sim, mas virou questão de honra não se deixar abalar. Isso surpreendeu muito Winston Churchill, que percebeu que nem sempre as pessoas precisavam de uma direção ou um líder para fazer a coisa correta: às vezes vale a pena ter fé nas pessoas porque o risco retorno da fé é esse, ela pode ser muito recompensadora.

Logo, toda a capital britânica voltou a viver sua vida normal, mesmo ouvindo os bombardeios e sabendo que ninguém estava a salvo. Para algumas pessoas, essa força de espírito marcou uma das viradas da maré.

No entanto, quero focar em algo implícito e não tão heróico dessa história: a capacidade humana de se adaptar. Ela é uma espada que corta para os dois lados, capaz de tirar alguém na inércia e de paralisar aqueles que não precisam se mexer.

Estamos completamente acostumados com modelos financeiros de liquidação internacionais que são globalmente aceitos, porém, com dono. O dono pode não ser uma pessoa ou uma empresa, pode ser um grupo de países com uma bandeira legítima. Mas, sim, tem quem possa virar a chave e desligar parte do sistema.

O grande trauma financeiro dessa guerra é que hoje existem 27 trilhões de reservas em dólares que viram o que aconteceu com as reservas russas, e ficaram preocupados.

No limite, e se eu for algum dia o inimigo por algum motivo?

Eu vendi por anos meus produtos e serviços em troca de uma moeda numa conta que, de repente, quando eu mais preciso, pode ser bloqueada?

Sem entrar nos méritos morais do conflito atual, hoje estamos acostumados a um modelo multinacional de liquidação e reserva financeira.

A partir do momento que as reservas de um país podem ser congeladas, duas grandes coisas irão acontecer: um país racional vai buscar ter um plano B no sistema de liquidação e talvez valha a pena eu converter o dólar que eu tenho em um ativo que, cedo ou tarde, sei que vou precisar.

O primeiro problema surge quando você resolve aos poucos deixando de usar estruturas multinacionais e usando estruturas diretas. Um exemplo: cada país fecha um acordo bilateral com outro parceiro comercial de forma que um tenha acesso ao capital do outro, sem passar por nenhum organismo. Isso tem impacto direto no “V”, de velocidade dos agregados monetários, que causa todo tipo de perda na produtividade e consequentemente no PIB potencial ao gerar, no limite, menos crescimento e mais inflação.

Mas meu ponto aqui nem é esse.

Meu ponto é, dinheiro é reserva de capital. É o potencial futuro de comprar ou adquirir algo. Se esse meio para um fim for estável, perfeito. Se ele for um pouco instável, não tem problema. Mas se ele pode virar pó do dia para a noite, sendo que certos países sabem que vão precisar de certas coisas, faz total sentido você converter parte disso em algo que ninguém poderá tirar de você.

Por exemplo, a China pode estar olhando para os seus 3 trilhões de dólares em números numa planilha e começar a pensar que talvez valha a pena ter um terço disso em algo físico, palpável. Dados todos os problemas do limitado mercado de ouro, uma forma pode ser comprar commodities que ela sabe que vai precisar no futuro. Se amanhã, por qualquer motivo, surgir uma briga com o Ocidente, ela ainda tem um tri de reservas físicas.

Estamos tão acostumados com o modelo atual que esquecemos que ele pode mudar, e uma vez mudado, o anterior parece coisa do passado e passamos a nos adaptar rapidamente.

Como diria um ex-chefe meu, quando o dólar muda de patamar, todo mundo estranha, passa 3 meses e vira o normal.

Se o novo normal for converter dólar em algo físico, que ninguém pode tirar de você, algo que faz todo o sentido, estamos apenas num primeiro passo de uma corrida por acumulação de insumos que pode ter efeitos e uma dinâmica jamais vista na história.

Isso é possível e é provável. Já estamos em terreno nunca explorado e nos adaptamos rapidamente a juros reais negativos e QE. Estamos começando a nos adaptar com a volta da inflação no mundo desenvolvido. Seria uma loucura imaginar um mundo onde o potencial de conversão de um direito (uma moeda) em um ativo faça sentido?

Minha opinião é que não. Seríamos e seremos capazes de sobreviver.

Algumas bombas vão estourar nas nossas vizinhanças, vamos perder entes queridos.

Mas o Brasil é exportador exatamente daquilo que o mundo talvez venha a querer. Nós iremos sobreviver, mais firmes, e mais fortes.

Rodrigo Natali

Nota de editor: Quer conhecer a carteira que se pode beneficiar dessa visão retratada acima? Assine a série Você Gestor, liderada por mim, Rodrigo Natali, estrategista-chefe da Inv, ex-diretor de câmbio do Unibanco e do Itaú Unibanco, com apoio de Nícolas Merola, analista CNPI.

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Rodrigo Natali

Estrategista-Chefe

Rodrigo Natali tem graduação e MBA pela FGV. É especialista em câmbio e macroeconomia, tem 25 anos de experiência no mercado financeiro, tendo passado por diversas instituições nacionais e internacionais onde exerceu a profissão de trader e gestor de fundos de investimento multimercado.

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