Sunday Notes #13 - Quantas vezes você vendeu a alma ao diabo?

26 de novembro de 2017
Guardei para você

Sunday Notes

Olá, leitor!

Neste domingo, você terá aqui uma nova crônica do Ivan, edição especial para os leitores da Sunday Notes.
    
Olivia Alonso


Caro leitor, aqui é o Ivan.

Uma das coisas mais difíceis na vida de um trader é saber ter disciplina. Definir uma estratégia e cumpri-la. Não são poucas as vezes em que, seja por análise dos fundamentos, seja por estudo dos gráficos, um trader aplicado descobre um ponto ideal de entrada ou de saída do mercado, início de um grande e prolongado movimento. Um longo inverno dos ursos. Ou um prolongado verão dos touros.

E, no entanto, na hora H, muda de ideia, se deixando seduzir por dicas e palpites, por comentários extemporâneos, por teorias sem o menor cabimento.

Para que isso não aconteça com você, caro amigo leitor, sugiro que tenha em mente a seguinte fábula.

Era uma vez um homem (vamos chamá-lo de Silva, para não enveredarmos pelo terreno perigoso das parecenças) que gostava de corridas de cavalos. Gostava, não. Silva era alucinado pelas corridas. Almoçava duplas e placês, jantava trifetas, sonhava com quadrifetas. Talvez por fanatismo atávico: quem sabe um dos seus tataravôs à 15ª potência tivesse sido viciado em corridas de quadrigas em Roma antiga.

Silva estava sempre no hipódromo. Desditosamente deixava, nos guichês do Jockey, mês sim, o outro também, gorda fatia do que ganhava com sua van que fazia transportes piratas na periferia de São Paulo.

Como todo perdedor que se preze (ou que se despreze), não conseguia fazer muitas amizades no prado. Os outros jogadores se afastavam dele. “Sai pra lá, pé frio! Secador!”

Rejeitado como um lazarento, Silva, o azarento, lamentava não poder escambar barbadas, nem ser um insider dos bastidores das cocheiras. E insider era uma coisa que não faltava no hipódromo. Entre eles, um treinador de cavalos, sem muitas vitórias no currículo e particularmente boquirroto. Boquirroto com os outros, bem entendido.

Quando Silva chegava perto, o homem virava as costas.

Certo dia, nosso desafortunado herói acabara de estacionar sua carcomida van nas imediações de Cidade Jardim.

Silva pegou na maçaneta para abrir a porta quando alguém, do banco traseiro, lhe tocou os ombros. Assustado, pois viera sozinho, ele olhou para trás e se deparou com ninguém menos do que o capeta em pessoa, empunhando o tridente.

O diabo abriu-lhe um sorriso e, com demoníaca (e redundante) objetividade disse ao que veio:

“Você gostaria de ter um exemplar do jornal de amanhã?”

Silva, que não tinha um raciocínio muito rápido, quem sabe a razão de suas desditas, não entendeu:

“E de que me adianta o jornal de amanhã?” 

“Serve para ver o resultado das corridas”, o Capeta brandiu o jornal. Na primeira página, o resultado do jogo de futebol, que só iria ocorrer à noite, mostrava que o Fluminense caíra para a série B. Silva desconfiou.

“E o que você quer em troca?”

“Sua alma”, respondeu o diabo, como se Goethe em pessoa houvesse roteirizado a cena, “Depois que você morrer, é claro”, apressou-se em esclarecer o coisa-ruim.
              
Como não tinha muita coisa a perder nesta vida (e, sendo jogador, topava arriscar-se na próxima), Silva aceitou. Pegou o jornal e correu para o prado, lendo aflito a página das corridas.

Fiel aos seus princípios, apostou tudo que tinha no primeiro páreo. Como não podia deixar de ser, ganhou. Ganhou no segundo. E no terceiro. No quarto, desencovou um dos maiores azarões da história de Cidade Jardim.

Com algum exagero, pode-se afirmar que Silva era um homem rico quando se aproximou do guichê de apostas para jogar no último páreo. Riqueza essa que tinha tudo para aumentar, uma vez que o prodigioso jornal noticiava que a égua Mancoleta vencera e pagara uma pule de 25 para 1.

Mas os lucros de Silva não haviam passado despercebidos. Pois, mais do que os fracassos, os sucessos despertam a curiosidade (sem falar na inveja) alheia.

Tendo se tornado um vencedor militante, os outros apostadores agora lhe sorriam, davam-lhe palmadinhas nas costas. Pediam-lhe dicas, que ele (talvez por vingança ou, quem sabe, porque o espírito de Fausto houvesse baixado em suas entranhas) sonegava.

“Eu não sei”, fingia-se de desentendido. “Ainda estou estudando o páreo”.

Eis que surge o treinador, aquele com o qual jamais conseguira conversar.“Meu amigo Silva. Como vai? Soube que andou ganhando. Já resolveu em qual deles vai apostar?”

Fosse outra pessoa, Silva até esnobaria. Mas não o treinador, um homem que circulava pelas cocheiras, que só faltava conversar com os cavalos.

“Bem, acho que vou de Mancoleta”, Silva confessou.

“Você ficou maluco? Não faça isso”. O treinador baixou o tom de voz para um débil sussurro, bafejando o ouvido do outro. “Olha, vou te contar um segredo. Mas que fique entre nós. A Mancoleta mancou. Jogue no Tiro Seco. É a barbada do ano.”

Silva jamais poderia ter acreditado. Tinha em mãos o jornal do dia seguinte, com a noticia da vitória de Mancoleta. E, mesmo que resolvesse contrariar a lógica, acreditando na barbada do outro, e não nos fatos, bastava deixar de apostar no último páreo e ido para casa com o que já faturara.

Só que Silva era oito ou oitenta, ganhar ou perder, a herança do romano correndo em suas veias. Apostou tudo no Tiro Seco.

Evidente que Mancoleta ganhou. Estava no jornal. Como um autômato, Silva deixou-se conduzir pelas pernas bambas para fora do hipódromo. E, como voltara a ser um pobre perueiro, ninguém lhe prestou a menor atenção. Caso contrário, teriam visto o amargo sorriso goethiano que emoldurou os instantes finais de sua tragédia. Já na rua, jogou-se sob as rodas de um ônibus.

Cobriram o cadáver macerado com o próprio jornal do falecido. O do dia seguinte, a página de turfe virada para cima. Uma mancha de sangue separava duas notícias. Em cima, a da vitória de Mancoleta. Em baixo, com letras miúdas, a de um suicídio à porta do Jockey. Mais um Silva que morreu.

Agora, muito cá entre nós, colunista e trader leitor. Quantas vezes você deixou uma parada certa, estudada, calculada técnica e fundamentalmente por alguém que entende do assunto, praticamente o jornal do dia seguinte, em troca de uma dica de um palpiteiro de mercado? Quantas vezes você vendeu a alma ao diabo?

Um abraço,

Ivan Sant'Anna.

Conheça o responsável por esta edição:

Olivia Alonso

Publisher

Especialista em investimentos, Publisher e CEO da Inversa. É formada pela Faculdade Cásper Líbero, com MBA em Finanças e Mercado de Capitais na FIA e especialização em Finanças e Negócios na Universidade de Macau. Vencedora do VI Prêmio de Educação ao Investidor da CVM e autora do livro “Criando Riqueza: um guia prático de investimentos e finanças pessoais para leigos”. Trabalhou em agências de notícias no Brasil e no exterior, no iG, no jornal Valor Econômico, na Empiricus e no Seu Dinheiro.

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