Mercadores da Noite #242: Tempos de inflação

18 de setembro de 2021
Será que o Brasil vai imitar a ficção do cinema, regredindo aos tempos de hiperinflação?

Caro(a) leitor(a),

Como todo mundo sabe, voltamos a conviver com a inflação. O pior é que não é apenas aqui, no Brasil, mas na maior parte do mundo, inclusive nos países mais desenvolvidos.

No filme O Curioso Caso de Benjamin Button, o personagem interpretado por Brad Pitt nasce ancião decrépito e começa a remoçar até morrer bebê recém-nascido.

Será que o Brasil vai imitar a ficção do cinema, regredindo aos tempos de hiperinflação? Duvido! Nos diversos países, tanto ricos como pobres, esse fenômeno geralmente só ocorre uma vez. Foi o caso da Alemanha e Áustria, após a Primeira Guerra Mundial, da Hungria, depois da Segunda, do Zimbábue, no final da era Mugabe, e da Venezuela de Chávez e Maduro.

Tudo bem. Tenho profunda convicção de que o Brasil vai encarar inflação de dois dígitos (ao ano, bem entendido), mas jamais voltaremos a conviver com a hiper.

Se nos encaminharmos para lá, muito antes do pior se materializar, teremos alguma espécie de revolução, golpe de estado etc. Ou seja, a sociedade não vai admitir.

De minha parte, convivi muito bem com a hiper brasileira. Esta penalizava aproximadamente oitenta por cento dos brasileiros, mas quem tinha conta em banco, aplicava no open e na bolsa, raciocinava em dólares e operava com doleiros não era afetado pela queda vertiginosa do valor da moeda.

Vejam, por exemplo, como lidei com o problema de moradia. Em 1982, ano em que a inflação bateu 100%, decidi que era melhor manter meu dinheiro parte aplicado no open em cruzeiros e parte depositada em dólares no exterior e alugar um imóvel ao invés de adquiri-lo.

Assim tinha mais capital para especular no Brasil (inflação é ótima para isso). Quanto ao aluguel, no primeiro mês representava metade de minhas despesas mensais.

Acontece que a legislação só permitia reajustes anuais. Ou seja, a cada mês pagava menos, muito menos.

Em 1987, quando a inflação atingiu 218,52%, decidi alugar um apartamento de quatro quartos, duas salas, três banheiros e amplas varandas na praia da Barra da Tijuca.

No primeiro mês do primeiro ano de vigência do aluguel, este representou 90% do meu ganho mensal. Ao final, em 1990, quando o IPC bateu 4.116,26%, eu pagava algo como o preço de um McLanche Feliz.

Cartões de crédito: eu tinha Visa, Mastercard, Ourocard, Nacional, Diners Club e American Express. A cada cinco dias, vencia a fatura de um. Então era só saber usar o cartão ideal na hora da compra.

Raciocínio: só em dólares.
Compra e venda de imóveis: só em dólares.

Compra e venda de carros: só em dólares.

Se o caro amigo leitor se der ao trabalho de procurar na internet cadernos de classificados nos jornais dos anos 1980 e primeira metade dos 1990, verá que todos os anúncios eram em dólares.

Naquela ocasião, eu tinha duas empregadas domésticas. Uma trabalhava de domingo a quarta-feira, a outra de quarta a domingo. Portanto eu tinha um estafe fulltime. Toda semana o salário delas era reajustado de acordo com a inflação.

 Em agosto de 1988, entrei numa crise de depressão, que durou até janeiro de 1990. Nessa ocasião, eu tinha sessões de análise, análise de grupo e psicanálise sete dias por semana.

Pois bem, quando percebi que estava curado, resolvi me dar alta, decisão da qual minha analista, L Z B M, discordou categoricamente.

Mas eu já estou preparado”, disse para ela.

Só que eu não estou”, respondeu L.

Pudera. Eu a convencera que a hiperinflação poderia trazer a reboque um desabastecimento total. Aliás, exagerava.

 “Estamos em vésperas de uma grande fome.”

Resultado: a profissional decidiu estocar víveres em casa, destacando dois quartos para isso. Pior, acumulou galões e mais galões de álcool, combustível que a maioria dos carros utilizava naquela época, correndo riscos de uma grande explosão.

Ah, já ia esquecendo. Ao caminhar pelas ruas, a gente se deparava com moedas o tempo todo. Aliás, tenho dois amuletos em minha carteira. Um dólar de prata de 1922 e uma moedinha minúscula de mil cruzeiros, de 1993.

A primeira serve para demonstrar que, mesmo nos Estados Unidos, considerando-se o longo prazo, a moeda perde grande parte de seu valor. Os mil cruzeirinhos mostram que a moeda pode não valer nada.

Finalmente, uma última demonstração de como eram aqueles tempos. No supermercado, a gente olhava para o cara que usava a maquininha de etiquetas de preço para remarcar as mercadorias e tentava pegar os produtos antes que ele passasse por ali.

Se ele estava reajustando o chuchu, naquela noite eu comia suflê de cenoura.

Um forte abraço e um ótimo fim de semana para vocês todos.

 


Ivan Sant´Anna

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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