Mercadores da Noite #27 - O drama do separatismo

1 de novembro de 2017
Não é de hoje que os movimentos separatistas existem e são ativos na Espanha

Mercadores da Noite

Olá leitor,
                
No sábado 19 de agosto de 1972 eu estava na cidade de Huelva, região da Andaluzia, no oeste da Espanha, não muito longe de Sevilha e quase na fronteira com Portugal. Era final da tarde, início da noite e o Fluminense disputava, no estádio do Recreativo, uma partida contra o Atlético de Madri, valendo pela primeira de duas rodadas do quadrangular Trofeo Colombino, que se disputava todos os anos naquela localidade.
                      
Naquela ocasião, eu, que não perdia um jogo sequer do Flu, fosse onde fosse, era uma espécie de diretor informal do clube. Pagava minhas passagens aéreas, diárias de hotel e refeições, mas ia para o estádio no ônibus do time e me sentava no banco de reservas, pertinho da linha lateral do campo.       

Em determinado momento desse jogo em Huelva, o bandeirinha da federação local assinalou um impedimento em minha opinião inexistente. Nosso ponta-esquerda, Lula, já ia entrar livre na área para fazer o gol.

“Espanhol ladrão!”, eu gritei, em bom português. Ao que o bandeira se virou para o banco e respondeu, olhando bem para a minha cara:

Yo entiendo”. E completou: “Además, yo no soy español, soy catalán.

Para meu alívio, ficou por isso mesmo. Ele não chamou o juiz para me expulsar do banco. Talvez, quem sabe, o juiz fosse espanhol.

Não é de hoje que os movimentos separatistas existem e são ativos na Espanha. Ainda no terreno do futebol, uma das equipes de La Liga, o Athletic Bilbao, da cidade do mesmo nome (e um dos três que nunca caíram para a segunda divisão; um shot de Jack Daniel’s para quem adivinhar os outros dois), só admite jogadores bascos, pois Bilbao fica nos País Basco, região com língua própria, que se situa parte no norte da Espanha e parte no sul da França.

Quem já leu “A Batalha pela Espanha”, de Antony Beevor, traduzido do original “The Battle for Spain” e publicado no Brasil em 2006 pela editora Record, sabe o quanto pode ser sangrenta uma divergência doméstica quando esta se transforma em luta armada.

Na Guerra Civil Espanhola (1936/1939), embora a razão principal do conflito tenha sido a luta entre republicanos (de esquerda, com a adesão de voluntários de todo o mundo) e nacionalistas (de direita, com apoio de Hitler e Mussolini), e não o separatismo, este teve grande influência no desenrolar da guerra. 

O generalíssimo Francisco Franco, comandante dos nacionalistas, venceu e assumiu o governo, com poderes de ditador. Permaneceu no cargo até sua morte, 36 anos mais tarde.

Na guerra civil espanhola, 610.000 pessoas, entre civis e militares, morreram nos combates. Outras 450 mil abandonaram o país, muitas delas vindo para o Brasil.

Agora, já me referindo aos tempos atuais, se na Catalunha houvesse só catalães, e se todos esses catalães quisessem ficar independentes, a situação estaria revolvida. Com certeza o governo central, em Madri, aceitaria a separação.

Acontece que, ao longo dos tempos, centenas de milhares de espanhóis, bascos, andaluzes, etc, se mudaram para Barcelona e arredores.

Fora isso, muitos catalães genuínos não querem se separar, pois tal coisa poderia implicar em abandono do euro e saída da Comunidade Europeia. Há de se acrescentar a necessidade de aumento de impostos para cobrir embaixadas nos demais países, novos ministérios, repartições as mais diversas, tesouro, banco central, moeda própria e uma gama incontável de despesas com as quais uma nação independente tem de arcar. 

Partilhas de países, ou tentativas de partilhas, quase sempre degeneraram em guerras literalmente fratricidas.

A Guerra Civil Americana (1861/1865), por exemplo, deixou uma herança de 204 mil mortos.

Na separação da Índia e do Paquistão (Partition) morreram nada menos que um milhão de homens, mulheres e crianças, entre hindus, muçulmanos e siques. Um burocrata inglês, Sir Cyril Radcliffe, pegou um mapa da Índia e definiu: Muçulmanos nas extremidades oeste e leste (Paquistão Ocidental e Oriental, sendo que este mais tarde se tornaria Bangladesh). Hindus e siques, no centro. Deu no que deu, um dos maiores movimentos migratórios da história da humanidade, com rios de sangue de lado a lado.

A Guerra Civil Russa (1917/1923), que pôs frente a frente os exércitos vermelho e branco, deixou no mínimo cinco milhões de mortos. 

Como nada na China é pequeno, a guerra civil de lá (comunistas de Mao Tsé-Tung contra nacionalistas de Chiang Kai-shek) matou quase 20 milhões de pessoas, entre feridos nos combates e vítimas da desnutrição.

Na própria Europa, recentemente, a Iugoslávia se dividiu em nada menos que sete países: Sérvia, Montenegro, Kosovo, Eslovênia, Macedônia, Croácia e Bósnia & Herzegovina. No genocídio, na “limpeza” étnica e na supressão de alimentos a prisioneiros, os senhores da guerra nos Bálcãs mataram cem mil pessoas.

Por tais razões, a Espanha dificilmente se envolverá em outra guerra civil, menos de 80 anos depois da primeira. Mas só a ameaça assusta. Se - e quando - morrer o primeiro separatista ou legalista, os ânimos poderão se acerbar.

Os bascos estão de olho. Como de olho estão os flamengos e os francófonos da Bélgica. No norte da Itália, alguns neofascistas querem se separar dos azeitonados do sul da Bota.

Ah, ainda tem a Escócia. No primeiro referendo, em 2014, os eleitores votaram por permanecer no Reino Unido. Mas a decisão foi por pequena margem e tomada antes do Brexit. Se houver nova consulta, como se comportarão os escoceses?

A partir de determinado momento, tornou-se comum considerar quatro grandes economias: Estados Unidos, China, Japão e Comunidade Europeia. Mas esta última está cada vez mais parecendo uma colcha de retalhos, sendo que cada retalho quer, por sua vez, se retalhar.

Em minha opinião, quem vai pagar por isso tudo é um ativo chamado euro. Sem querer bancar o adivinho, e já bancando, não duvido que daqui a não muitos anos a gente vai voltar a operar marcos alemães, francos franceses, liras italianas, escudos, pesetas e pessetas.

Pessetas?

Sim, é como se escreve a palavra peseta em catalão.

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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