Mercadores da Noite #21 - Jogando dinheiro pela janela

20 de setembro de 2017
O grande bull market

Mercadores da Noite

Caro leitor,

Nos 37 anos nos quais trabalhei como trader e broker no mercado financeiro, o período mais estafante foi entre outubro de 1966 e julho de 1971, durante o grande bull market de ações que empolgou (e depois decepcionou) todo o Brasil.

Houve um momento em que a Bolsa de Valores do Rio, na época a mais importante do País, suspendeu os pregões das quartas-feiras para que as corretoras pudessem manter em dia os registros e as liquidações de seus negócios.

Nessa ocasião, não era incomum eu trabalhar em meu escritório na Fator Corretora (atual Banco Fator) aos sábados e domingos, não raro varando a noite de um para o outro. Como não podia deixar de ser, entrei em profunda estafa que se materializou em diversas ocasiões, algumas perigosas, outras engraçadas.

Devia ser por volta de onze da noite de um sábado e eu estava sozinho na corretora examinando contas e margens de clientes (a Fator financiava os especuladores, recebendo como garantia as ações compradas por eles). Resolvi dar uma olhada pela janela. A Travessa do Ouvidor, onde a Fator ficava no quarto andar do nº 21, estava totalmente deserta com exceção de meu Galaxie 500 azul-marinho novo em folha e de um meliante tentando arrombá-lo.

Ao invés de chamar a polícia, desci correndo pelas escadas (os elevadores não funcionavam nos fins de semana e feriados) e expulsei o ladrão aos safanões. Com medo de que ele voltasse, talvez acompanhado de alguns comparsas, voltei ao escritório apenas para trancar tudo e fui embora para casa. Dormi umas quatro ou cinco horas e regressei ao escritório na manhã de domingo.

Em outra oportunidade, bem cedo pela manhã, eu vinha pela avenida Presidente Antônio Carlos dirigindo o Galaxie. Já me aproximava do edifício-garagem Menezes Cortes, onde tinha uma vaga cativa e guardava o carro nos dias úteis. Com o joelho direito eu mantinha o volante firme. Ao mesmo tempo, com uma das mãos, acionava o isqueiro do carro e pegava um cigarro. Com a outra tirava do bolso minha carteira de dinheiro na qual guardava também o cartão do estacionamento.

Era o último cigarro do maço, maço esse que resolvi jogar fora pela janela do carro (tudo bem, confesso, eu era porco mesmo e não vou estragar minha história só para bancar o bom moço). Mas, exausto a futuro, pois sabia que iria me esgotar ao longo do dia, ao invés de jogar o maço na rua joguei a carteira de dinheiro. Só faltou ela cair nos braços de um moleque, mas parou a menos de meio metro dele.

Com um olho estupefato focado no maço vazio na minha mão e outro no espelhinho retrovisor vendo o pivete se escafeder a galope com meu dinheiro, não me restou outra alternativa a não ser a de seguir em frente e convencer, com sucesso, o homem da guarita do edifício-garagem que eu era dono de uma vaga.

Dinheiro... dinheiro... eu ganhava tanto dinheiro que não tinha como gastá-lo. E muito menos tempo para fazê-lo.

Eu trocara o Galaxie por um Alfa Romeo e comprara um Karmann Ghia TC para minha mulher. Tinha também uma moto Honda 360. Pois bem, numa sexta-feira os dois carros enguiçaram − naquela época havia carburadores, platinados, distribuidores, dínamos, etc., etc., e os carros, mesmo os novos, estavam sempre na oficina.

Como a cara-metade não andava na garupa da moto nem que fosse sob ameaça de um revólver, resolvi alugar um Fusca. Um dos meus clientes de Bolsa era dono de uma locadora e peguei o carro com ele.

Acontece que no fim de semana nós não saímos de casa e me esqueci totalmente do Fusca na garagem. Até que, quase um mês depois, o porteiro me disse:

“O síndico mandou avisar ao senhor que não pode ter três carros na garagem.”

“Mas como, três? Só tem o Alfa e o TC. A moto não ocupa espaço. Fica atrás da coluna.”

“Mas e o Fusca? Aquele Fusca (apontou para o maldito) não é seu também?

Só então me lembrei do aluguel e fui devolver o carro, com menos de quinze quilômetros rodados em um mês. Já cheguei na locadora esbravejando:

“Como é que vocês fazem uma coisa dessas? Por que não me lembraram do aluguel do carro?”

“Mas como lembrar?”, o dono não entendeu o motivo de minha indignação.

“A gente se vê lá na Fator quase todos os dias. Não faz o menor sentido exigir a devolução do carro. Por quê? Bateu? Capotou? Roubaram? Não tem problema. Tá no seguro.”

“Não, cara. Ficou paradinho na garagem do meu prédio. E vocês faturando na moita.”

Ele acabou me dando um desconto de 50% e lhe dei em troca uma “barbada” da Bolsa, que deve ter dado certo porque o mercado ainda subia todo dia.

Em 1971, quando a Bolsa virou 180 graus e iniciou um longo bear market que durou quase uma década, todo mundo se bandeou para o open. Ganhava-se muito mais dinheiro e trabalhava-se infinitamente menos.

De dez da manhã ao meio-dia, fazíamos o mercado de dinheiro. De três às cinco da tarde o de papéis e de dinheiro a termo. E era só. Dias espremidos entre feriados e fins de semana eram enforcados. Nessas ocasiões, dava-se e tomava-se dinheiro por quatro dias e pronto.

A partir de 1983, com o open já pouco lucrativo, e tendo vendido a Fator, passei a operar os mercados de Chicago e Nova York. Vivia na ponte aérea Brasil/EUA.

Ao mesmo tempo, comecei a dar palestras, justamente sobre os mercados internacionais, em instituições financeiras brasileiras. No final das aulas, eu costumava perguntar se alguém morava na Barra, para filar uma carona. E quase sempre arranjava uma.

Com o passar do tempo, o mercado no Brasil foi se sofisticando, se equiparando ao lá de fora e os traders daqui não dormiram no ponto. Eu continuava com minhas palestras, agora com mais demanda. Só que quando garimpava uma carona o pessoal dizia que ia voltar para a trading desk.

Agora os traders rodavam 24 horas: São Paulo, Sidney, Tóquio, Hong Kong, Frankfurt, Paris, Londres, Chicago, Nova York, São Paulo. Trader que se preza, hoje em dia não descansa nem nos fins de semana. Trabalham tanto quanto a turma do bull market de ações 66/71.

Mas nunca ouvi falar de alguém que jogou dinheiro pela janela.

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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