Mercadores da Noite #104 - Nem madrepérola nem feijão mulatinho

15 de fevereiro de 2019
A profissão de trader é cheia de armadilhas e reconhecer o momento de tomar as decisões é crucial. O Ivan fala sobre isso nesta newsletter.

 

Caro leitor,

Vamos supor que você seja um jogador de pôquer. Não um mago do baralho (cuidado, revisor), que sabe de cor e salteado as possibilidades matemáticas de cada uma das combinações do jogo. Muito menos alguém que estuda a fundo as quase imperceptíveis reações dos adversários para descobrir, por um pequeno tique nervoso, como morder os lábios ou estalar o polegar, se um dos “inimigos” da mesa está blefando.

Não. Você não é tão bom assim.

Mas também não é um otário que, de modo açodado, vai em todas as mãos, mesmo que com um mísero par de oitos ou três cartas do mesmo naipe, caso este em que a possibilidade de fazer um flush é de apenas seis por cento.

Você é um jogador mediano. Se reúne para um pôquer de amigos, apenas para se divertir, uma vez por semana. Quando a noite é muito ruim, perde quinhentos reais. Se as cartas estão favoráveis, ganha isso. Quinhentos pra lá, quinhentos pra cá.

Ao longo de um ano, sai no empate. Mas tem plena consciência de que, se relaxar, pisar na bola, vai perder sistematicamente. Por isso presta atenção às pedidas dos demais jogadores, só vai na rodada quando sua mão é boa. Sabe carregar nas fichas quando está de posse de um bom jogo. Ah, já ia me esquecendo, de vez em quando passa um blefezinho, que ninguém é de ferro.

Pensando melhor, acho que você não é um jogador mediano. É bom. Tem mais: só não é melhor porque, com toda razão, entende que o pôquer não é uma coisa importante em sua vida. Trata-se apenas de um hobby, que poderia ser bilhar, pingue-pongue, torneios de videogame, culinária mediterrânea ou a participação em um coral amador (sua voz é afinada e seu ouvido, quase absoluto).

Imaginemos agora que, nas férias, você vá, com a mulher e as crianças, para um hotel fazenda. À noite, outros hóspedes o convidam para uma roda de pôquer. Você se faz de rogado, reluta um pouco, diz que está com sono, que tem de acordar cedo para andar a cavalo. Mas a verdade é que estava louco para “chorar” uma trinca de valetes e manusear uma pilha de fichas, cada valor uma cor, ouvindo-lhes o tilintar ao toque dos dedos.

Já sentado à mesa, tem duas decepções: as fichas são tampinhas de cerveja e feijões, o cacife é de vinte reais e o pingo, de 50 centavos (um grão de feijão mulatinho). Você só não se levanta e vai embora porque não quer fazer uma desfeita aos pais dos amiguinhos de seus filhos.

É lógico que, na situação acima, você vai jogar mal. Não prestará a menor atenção nas pedidas dos outros, na sua vez pedirá até quatro cartas, quase sempre pagará para ver o jogo do adversário, mesmo quando as evidências estejam todas a favor dele.

Você vai perder, com certeza, dois ou três cacifes, nada que venha a desfalcar sua carteira, muito menos arruinar as férias.

Pensemos agora numa situação totalmente distinta. Você deu “aquela” porrada no mercado futuro de DI, deixou as crianças com a sogra e foi com a cara-metade passar uma temporada num resort de altíssimo luxo na ilha de Saint Barthélemy, no Caribe.

Lá, um grupo de traders brasileiros (muito aqui entre nós, de uma turma superior à sua, gestores de centenas de milhões, que são arroz de festa em Saint Barth) o chama para um “joguinho” de pôquer.

“Coisa boba”, diz um deles, “só pra distrair’.

‘Loucura minha, jogar com esses pezzonovanti’, você pensa. Pensa, mas aceita o convite.

“Claro, só pra distrair.”, não foi sua razão que respondeu. Foi seu ego desafiado.

Minutos mais tarde, você está sentado numa mesa forrada de feltro, tendo a frente uma pilha de fichas de madrepérola no valor de dez mil dólares, cacife inicial do tal “joguinho”, do qual só está participando para não dar aos parceiros a impressão de que é frouxo, mão fraca, chinfrim, raia miúda, segunda divisão.

Como de burro você não tem nada, passa a jogar fugindo da maioria das mãos, tibieza da qual logo a mesa toda se dá contra. E, sem a menor comiseração, os graúdos passam a blefar em cima de você, mão após mão.

Tal como seria de se supor, em Saint Barth você perde também, como acontecera no prosaico hotel fazenda. Só que, desta vez, o cacife e meio que entregou aos espadas foi de quinze mil dólares. Tudo porque entrou na turma errada.

As situações acima estão sempre acontecendo na vida de um trader. Operar lote muito pequeno, e irrelevante para a carteira, o que abrirá a guarda do profissional, terá como consequência uma erosão desnecessária nos ativos sob sua administração. Ou entrar pesado demais em uma posição, o que o obrigará a ter um stop exageradamente curto ou, pior, que lhe tirará a capacidade de discernimento para avaliar, a cada passo, o movimento do mercado.

A deficiência número 1 (entrar muito leve) costuma acontecer logo após um sucesso. Felizmente, trata-se de um pecado venial. Sem querer arriscar o ganho, o trader, só pra não ficar de fora, faz uma posição pequena, sem muito, ou nenhum, planejamento, quando era melhor ter ido para Saint Barth (ficando longe dos joguinhos perigosos, é claro) ou para o hotel fazenda e sentar-se ao inocente e burguês poquerzinho convescote. O tal das vinte pratas e do feijão mulatinho.

Já a número 2 (entrar muito pesado) pode ser mortal. Não raro surge após uma perda séria, que tira do trader o equilíbro de raciocínio. Movido por um misto de ganância e pânico, ele pensa: “Vou pro baralhão, pro tudo ou nada, vou buscar o que perdi, pois a história não fala dos covardes”, e outras bobagens. 
Prezado leitor, a história fala sim. E fala mal. Um trader ferido torna-se presa fácil e fica na iminência de comprar passagem para a tragédia.

A profissão de operador de mercado é cheia de armadilhas. Algumas, simples espinhos, picadas de marimbondo, que doem, mas passam. Outras, terríveis minas terrestres, que, quando não matam, aleijam para sempre. Você, amigo trader, tenha isso em mente todas as manhãs. E não se vexe em ficar de fora, apenas assistindo, sempre que não tiver certeza de que a posição é boa, o lote é justo e a tendência, bem definida.

Um abraço,

Ivan Sant'Anna

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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