Mind the Gap #14 - Qual seria o limite de atuação do Fed?

27 de agosto de 2020
Banco central dos EUA vive dicotomia entre controle da curva de juros e fomento de liquidez aos mercados

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Nota do editor: nas próximas linhas, Marink Martins vai mostrar a você porque o banco central dos EUA vive uma das maiores crises de sua história.

Olá leitor(a)!

Na newsletter de hoje, quero explorar a seguinte pergunta: qual seria o limite de atuação do banco central americano?

Escrevo este texto após uma alta não muito expressiva dos índices globais no dia anterior. Aqui no Brasil, a bolsa até caiu por questões políticas. 

Mas o meu foco é na área internacional. Em particular, as ações das empresas associadas à nova economia, beneficiadas do stay at home (fique em casa) pela pandemia que a gente vive, desempenharam positivamente. 

As ações de empresas baseadas em computação em nuvem, e de atividades ligadas a serviços de digitalização, também desempenharam muito bem, mas de uma forma muito surpreendente. 

Para citar alguns exemplos: a ação da Netflix subiu quase 12%. A ação da Salesforce, empresa de software baseada em São Francisco, centro da tecnologia nos EUA, disparou 26%. 

A ação da Shopify, empresa canadense ligada ao comércio eletrônico, teve valorização de 5%. O papel da Tesla, que todos conhecem como a fabricante de carros elétricos, subiu 6,5%.  

As ações do Facebook subiram 8,22%. Ainda tiveram outras altas expressivas dentro do setor de tecnologia. Mas por qual razão a gente viu esse tipo de comportamento?
 

Inflação em xeque

Uma das interpretações (isso certamente ficará mais claro nesta quinta-feira) está associada a uma expectativa de que o presidente do banco central, o Jerome Powell, fará um anúncio que deixará os investidores deste segmento da nova economia bem mais tranquilos.

Powell provavelmente dirá que a taxa básica da economia americana, a Fed Funds Rate, ficará inalterada em um intervalo de 0% a 0,25% por um prazo de cinco anos.

Pensa só: quando eu ouvi isso, pensei logo no Warren Buffett, que uma vez disse “se a taxa de juros permanecer neste nível atual, as ações estariam baratas”. 

Isso talvez tenha sido o catalisador para esta alta expressiva. Digo que é bem possível (e muito provável) que a gente veja um mercado se comportando a uma forma análoga ao visto nas décadas de 1940 e 1950 nos EUA.

Na década de 1940, marcada pela Segunda Guerra Mundial, ocorreu um crescente endividamento do governo americano, chegando a atingir 130% do PIB.

Em decorrência, o que a gente viu nestes anos e na década subsequente, de 1940 à 1950, foi um crescimento inflacionário.

Tanto é que, um investimento de US$ 10.000 feito em 1941 em títulos do Tesouro dos EUA de 10 anos se transformou em US$ 12.700 – em termos nominais – no ano de 1952. 

Porém, em termos reais (levando em conta a inflação do período), houve uma desvalorização para US$ 6.800 – perda brutal do valor do poder de compra do dólar durante este período.

A bolsa subiu (em termos nominais). Diante de tudo isso, essa é a narrativa que eu venho trabalhando, com base em uma certa expectativa: qual seria o limite? O que pode dar errado?

 

Controle da curva de juros

Recentemente, eu ouvi falar que se o Fed fizer isso, de fato garantir que a taxa de curtíssimo prazo vá ficar próxima a zero, provavelmente investidores focados nas Treasuries (conhecidos por aquela expressão em inglês bond vigilants) deverão empinar a curva.

Estes vigilantes, que ficam de olho na curva de juros todo o tempo, sempre operando spreads entre diversos prazos da curva, provavelmente farão com que a curva de juros comece a se inclinar de uma forma absurda. 

Imagine: a taxa de curtíssimo prazo dominada pelo Fed próxima a zero e a taxa mais longa, dominada pelo mercado, bem mais elevada. Será que isso é possível? 

Possível certamente é. Será que é provável? Eu já penso que não: o próprio Fed hoje em dia (e não é só por causa do cenário atual, vimos movimentos análogos como uma reação da crise de 2008), vem atuando em toda a curva.

Por exemplo, o Fed fez operação twist em que compra títulos longos e vende a parte curta.

E certamente é uma possibilidade que o Fed continue a fazer isso, comprando títulos de longo prazo, desta forma mantendo a taxa de juros de longo prazo também mais baixa para a curva de juros não inclinar muito. Por que isso é importante?

Isso é importante porque quando os analistas fazem estimativas em relação ao fluxo de caixa dessas empresas (sejam tradicionais ou da nova economia), as taxas de juros utilizadas para trazer a valor presente o fluxo de caixa projetado não é uma taxa curta, mas sim uma taxa longa. 

É muito importante para o Fed manter essa curva em uma inclinação aceitável pelo mercado. O nome disso é uma intervenção chamada Yield Curve Control, uma manipulação da curva de juros.

Poxa, mas se o Fed pode manter a taxa de juros de curto prazo inalterada por 5 anos e pode também manipular a parte longa da curva, será que há algum limite, será que há algum risco de ficar comprado na bolsa de valores? 

Porque em princípio, tudo nos leva a crer que essa bolsa vai continuar subindo ad eternum, nunca mais vai cair.

Novamente: em mercado financeiro, tudo é possível. 

Mas em termos de probabilidade, devemos buscar uma solução, pelo menos uma alternativa para pensar, explorar algo que dê errado neste sentido.

Qual seria a válvula de ajuste?
 

Dólar, Volcker e o tabu do Fed

A válvula de ajuste que eu busco comentar aqui talvez seja o dólar. E, nesse sentido, vale a pena refletirmos sobre o que ocorreu nos anos 1980.

Os anos 1980 nos EUA foram difíceis, principalmente no começo da década. O Paul Volcker, que era o presidente do banco central, teve que combater a inflação que estava muito elevada.

Ele elevou a taxa de juros, provocando uma certa recessão no começo (na época era o governo do Jimmy Carter, que não conseguiu ser reeleito justamente porque a economia não ia bem).

Feito isso, os EUA conseguiram conter a inflação em níveis baixos, a economia voltou a crescer no governo Reagan e a bolsa começou a subir muito, com o dólar se valorizando demais em um determinado momento.

Lá em 1985, foi feito o acordo de Plaza. Esse acordo de Plaza foi um encontro das principais economias do mundo para derrubar o dólar. Elas tiveram sucesso, o dólar caiu, mas logo voltou a se apreciar.

Até mesmo porque as empresas americanas iam muito bem e a bolsa americana não parava de subir. 

Até que, em fevereiro de 1987, foi feito um novo acordo, o tratado de Louvre e, mesmo assim, o dólar ainda estava forte. A moeda tinha se apreciado e permaneceu forte.

A bolsa, que ia muito bem, começou a enfrentar algumas dificuldades em setembro de 1987 e, quando chegou em 19 de outubro de 1987, a famosa Black Monday, o mercado derreteu, no dia que ainda registra a maior queda em um índice americano em um único pregão.

Vivenciamos essa queda histórica, mas tivemos um evento ocorrido no domingo anterior à esta forte desvalorização, que se apresenta como um dos catalisadores da tragédia observada na segunda.

O evento foi um discurso feito pelo James Baker, secretário do Tesouro dos EUA na ocasião, em que, durante pronunciamento na Alemanha. disse “se vocês não promoverem uma valorização no marco alemão, nós iremos desvalorizar o dólar”.

Esse discurso, de acordo com especialistas, foi um catalisador para aquela queda.

Bem, eu não quero aqui afirmar que foi somente este evento: tratando-se de mercado, temos sistemas complexos, diversas variáveis atuando. 

Sabíamos que naquela ocasião em 1987 havia detalhes técnicos, como portfolio insurance, alguns produtos novos que contribuíram muito para a queda expressiva registrada naquela segunda-feira negra de 1987.

Mas o ponto aqui é chamar atenção para o seguinte: dependendo da forma pela qual o banco central conduzirá sua política monetária, é possível que os investidores globais (que hoje tem muitos ativos nos EUA) se sintam ameaçados de alguma forma por uma política muito frouxa e decidam retirar recursos dos EUA, promovendo assim uma queda expressiva no dólar. 

Se isso ocorrer (não estou falando que isso vai ocorrer, mas existe essa possibilidade) de fato o Fed poderá ficar de mãos atadas, até mesmo porque o tema dólar é um certo tabu para o Fed. 

A Danielle DiMartino Booth, que atuou no Fed de Dallas, em uma entrevista disse: “no Fed não se fala de dólar. O dólar é um assunto exclusivo do Tesouro americano”.

Se, em 1987, Paul Volcker não se dava tão bem com James Baker, devemos saber qual é a relação de Jerome Powell e Steve Mnuchin.

Bem, essa é uma novela que vale muito a pena assistir. E temos que ser pacientes para observar. 

Eu fico por aqui. Até a próxima newsletter!

Um grande abraço,

Marink Martins

Conheça o responsável por esta edição:

Marink Martins

Especialista em Opções e Mercados Globais

Formado em Finanças pela University of North Florida, em Jacksonville, Marink Martins é um dos maiores especialistas do Brasil em operações não direcionais, com especial foco em Opções e em volatilidade. Em seus mais de 20 anos no mercado financeiro, experimentou as euforias da Bolsa de Valores e sobreviveu às suas piores crises, tendo contato com as principais estratégias de investimento em Wall Street.

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