Mercadores da Noite #139 - O dólar é nosso

19 de outubro de 2019
Abertura de contas em dólares no Brasil, prevista em projeto de lei, pode ser um tremendo avanço liberal e quase tão importante quanto a abertura dos portos decretada por Dom João VI.

Caro leitor,

Na segunda-feira de 7 de outubro, o Banco Central encaminhou ao Congresso proposta de projeto de lei que permitirá que os brasileiros possam abrir contas em dólares no Brasil.

Além de ser um tremendo avanço liberal, isso nos igualaria (nesse item, bem entendido) aos países mais avançados do mundo, onde trata-se de uma transação bancária corriqueira.

Aqui e agora, com os índices inflacionários próximos do piso da meta, e previsão quase unânime de que o cenário se manterá nos próximos anos, não poderia haver ocasião melhor para a implantação da nova regra.

Fosse durante os 36 anos de inflação (1958-1994), ou mesmo na época de escorregões pós-real (governo Dilma, por exemplo), haveria uma corrida para essas contas em dólar, o que exigiria, por parte do BC, uma série de correções de rumo nos nossos sistemas cambial e bancário.

O melhor da história é que não vemos nenhum fanático nacionalista gritando nas ruas: “Abaixo os ataques à nossa soberania!”; “Dollar, go home!!”; “Fora com os vendilhões da pátria!”.

Embora acredite que as pessoas não vão sair adoidadas transferindo seus reais para dólares (o diferencial de taxas de juros deverá desestimulá-las), só o fato de que se possa fazer isso já é uma formidável alteração no comportamento hermético e xenófobo que quase sempre prevaleceu no Brasil.

Comecemos pelo maior erro de todos: a campanha do “petróleo é nosso”, nos anos 1950, que deu origem à Petrobras e seu monopólio. Isso atrasou, em décadas, o programa de extração petrolífera, que poderia ter sido leiloado entre as grandes empresas mundiais do setor.

Outro slogan que me dava vontade de cortar os pulsos era “minério não dá duas safras”, usadíssimo nos mesmos anos 1950, principalmente contra a mineradora americana Hanna Mining em Minas Gerais.

Da década de 1950 para cá, o consumo mundial de minério de ferro subiu barbaramente, mas jamais faltou matéria-prima. Muito pelo contrário: Brasil, Austrália e Rússia (então União Soviética) podiam ser incompetentes em tudo menos no manuseio e transporte do ferro, uma vez que itens logísticos determinam o preço final do produto, já que escavar o minério, praticamente a flor da terra, sai quase de graça.

Pois é, os parvos nacionalistas do Brasil dizendo que não dá duas safras. E precisa? Só as reservas de Carajás, onde, estima-se, há 7 bilhões de toneladas de minério de ferro de ótima qualidade, sustenta o consumo mundial por séculos.

Uma medida altamente nacionalista, que perdurou durante muitos anos no Brasil, foi a lei de remessa de lucros. Nenhuma multinacional que operasse aqui podia remeter mais de 10% de seu lucro para fora.

Além de xenófoba, a regra era burra: essas empresas superfaturavam suas compras no país-sede e subfaturavam as vendas para lá, contornando a lei e gerando um resultado fraco nestas bandas.

Para agravar a situação, enviavam, religiosamente, para fora, um décimo desse lucro. Bastou o limite ser revogado, durante o governo Castelo Branco, para que a maioria das companhias estrangeiras rentáveis estabelecidas no Brasil parasse de fazer as remessas para suas matrizes. Começaram a pagar mais impostos aqui, além de reinvestir o lucro sempre que fosse bom negócio.

Voltando ao passado, e especificamente ao dólar, que é o tema deste artigo, logo depois da Segunda Guerra a moeda americana, para efeito de câmbio contra o cruzeiro, era dividida em categorias.

Dólar de 1ª categoria: o mais barato – era por este que os funcionários públicos brasileiros em missão no estrangeiro recebiam suas diárias. Nas demais categorias, se enquadravam os exportadores, importadores, compradores e vendedores de serviços, etc.

Mais tarde, criou-se o regime de apenas uma cotação, que a gente chamava de dólar oficial. Os turistas brasileiros que viajavam para fora, por exemplo, tinham direito de comprar até mil dólares. Para isso, precisavam apresentar o passaporte e a passagem. O resto era adquirido dos doleiros, que vendiam o paralelo, ou black.

Todo mundo que viajava tinha seu doleiro. Os cartões de crédito brasileiros não eram aceitos fora do Brasil. Uma medida para se aferir a situação cambial era ver o ágio do black em relação ao dólar oficial. Bastava ver no jornal:        

Dólar:         Oficial (250 cruzados)

Paralelo (530 cruzados)

Finalmente, as coisas melhoraram. Nos últimos anos, criou-se o dólar turismo e os viajantes deixaram de precisar dos doleiros. Nossos cartões de crédito e débito passaram a ser internacionais.

Agora, se o BC e o Congresso se acertarem, poderemos ter dólares em conta no banco. O que mais me entusiasma, nessa possível transformação, é antever a possibilidade de os brasileiros usarem essas contas em moeda estrangeira para operar ações, commodities, futuros, opções e adquirir cotas de fundos internacionais, eliminando um caminhão de burocracia.

Essas coisas sempre têm contrapartida. Vai haver mão dupla. O dinheiro dos gringos também vai chegar, já que a metodologia deverá se tornar mais simples.

Será um salto gigantesco à frente para as instituições financeiras do Brasil. Dará também um impulso tremendo aos players de nosso mercado de capitais, sejam eles investidores, especuladores, traders ou brokers.

Em sendo ampla e libertária, a nova lei será quase tão importante quanto a abertura dos portos, por Dom João VI, em 1808.

Ivan Sant'Anna

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Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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