Mercadores da Noite #298: Voto de cabresto

15 de outubro de 2022
Para quem acha que o processo eleitoral de hoje em dia no Brasil é abominável ou imperfeito, deixe-me contar como as eleições funcionavam antigamente numa cidade do interior...

Olá, leitor(a),

Para quem acha que o processo eleitoral de hoje em dia no Brasil é abominável, ou pelo menos imperfeito, deixe-me contar como as eleições funcionavam antigamente numa cidade do interior.

Mas comecemos pelo começo.

Em 1949, quando eu tinha nove anos, meu pai, que era chefe de gabinete do ministro da Agricultura do governo Dutra, recebeu uma carta do juiz de menores, advertindo-o sobre meu comportamento.

Mestre em travessuras, para não usar a palavra “delinquências”, eu costumava trocar as cartas das caixas postais das casas de minha rua, Cesário Alvim, no bairro do Humaitá, onde morávamos no número 10.

Outro hábito que tinha era de, montado na bicicleta, me agarrar nos balaústres dos bondes (havia o 10, Gávea, o 11, Leblon, e outros cujo número não me lembro) e ir, por exemplo, até o Jockey Club.

Sempre sob críticas ferozes dos passageiros, que temiam ver aquele moleque se arrebentar todo ou até mesmo morrer rodrigueanamente no asfalto.

Mas isso não era o pior. Eu gostava de, junto com meu irmão (sete anos) pôr obstáculos (pedras ou pedaços de ferro) nos trilhos dos bondes para tentar descarrilar um deles, tarefa na qual, felizmente, nunca logramos êxito.

Foi quando meus pais me desterraram. Fui enviado para a cidade de Catalão, no sudeste de Goiás, para ser educado por minha avó, Iaiá, professora e dona do externato Santana, que funcionava num galpão (ainda existe) nos fundos da casa dela e de meu avô.

Era considerada a melhor escola da região.

Vovó Iaiá me fazia obedecer com um simples olhar. Me impunha cotas de leitura. O dever de casa era sagrado. Antes de ficar pronto, eu não podia pôr os pés na rua.

Pois bem, foi em Catalão que testemunhei as eleições gerais de 1950, na qual meu pai se candidatou a deputado federal, não conseguindo se eleger.

Naquela época, os candidatos tinham de imprimir e distribuir as cédulas com seu nome. A do meu pai, por exemplo, era:

Sebastião de Sant’Anna e Silva
Deputado Federal

Forneciam também os envelopes, dentro dos quais iam cédulas com os nomes dos candidatos a deputado federal e estadual, senador, governador, vice-governador, presidente e vice-presidente da República.

Meu pai, assim como a maioria dos concorrentes, não tinha recursos nem logística para distribuir cédulas e envelopes por todo o estado (que incluía o território do atual Tocantins).

Houve um candidato, Wagner Estelita Campos, que alugou um teco-teco com um piloto para lançar cédulas sobre as principais cidades. Só que, subornado por um concorrente de Estelita, o piloto lançou as cédulas sobre as águas dos rios Araguaia e Tocantins.

Ficou famosa uma frase do aviador:

“Se peixe votar, o Estelita está eleito.”

Pois os dourados, pintados, tambaquis, lambaris, tucunarés, etc., devem ter votado porque ele se elegeu.

No final da tarde da véspera da eleição, caminhões pegavam, nas fazendas próximas, os trabalhadores de cabo de enxada e levavam para uma praça cercada, no centro de Catalão, que era conhecida como curral eleitoral.

Lá permaneciam toda a noite, comendo churrasquinho no espeto com farofa, bebendo cerveja e assistindo a shows de cancioneiros e violeiros. “Não há, ó gente, ó não, luar, como esse do sertão...”, era uma das músicas.

De manhã cedo, assim que abriam a votação, os eleitores de cabresto, nome que se dava a eles, eram levados até as seções eleitorais. Na porta, recebiam um envelope, fechado a cola. Lá dentro havia cédulas para todos os cargos disputados, de presidente da República (os principais candidatos eram Getúlio Vargas e o brigadeiro Eduardo Gomes) até deputado estadual, cada qual qual com uma cédula.

O voto era totalmente secreto. Secreto para o eleitor, é bom esclarecer, que não tinha a menor ideia de quem estava votando. Só sabia que foi o coronel que mandou.

Cabos eleitorais tomavam conta de cada seção. Me lembro de minha mãe apontando Diógenes Sampaio, chefão político local e líder da família Sampaio que incluía vários pistoleiros, inclusive o famoso João Sampaio, que matara o não menos célebre Salomão de Paiva, além de ter liderado o linchamento do poeta Antero de Carvalho em 1936.

“Aquele é o homem”, ela não precisou dizer mais nada.

Por sinal, a coligação através da qual meu pai era candidato apoiava Getúlio Vargas. Só que minha mãe, udenista roxa, trocava cédulas do Getúlio pelas do brigadeiro Eduardo Gomes.

Outra coisa que se costumava fazer era dar aos eleitores notas de 500 mil reis cortadas pela metade.

“Se o Juca da dona Joana (nomes fictícios) vencer, você recebe a outra metade.” Isso era muito persuasivo.

Encerrada a votação, os sacos de lona, com os votos, passavam a noite na delegacia de polícia ou na agência dos Correios para serem levados no dia seguinte para a capital, Goiânia, onde era feita a apuração.

Não foram poucas as vezes em que esses sacos eram trocados por outros, idênticos por fora, só que com cédulas diferentes no interior. A cara de pau era tão grande que não raro todos os envelopes incluíam combinações idênticas de candidatos.

No trajeto para Goiânia também aconteciam essas reversões eleitorais.

Foi essa a minha primeira lição de “democracia”. Por isso não me escandalizo muito com as coisas que acontecem nos dias de hoje.

Só que, por ter mais de 70 anos, e não ser mais obrigado a votar, abdiquei de ser eleitor. Como deixei de fazê-lo por três vezes seguidas, meu título foi cancelado pela Justiça Eleitoral.

Evidentemente, as eleições se tornaram muito mais confiáveis. Só que, em muitos lugares do país, inclusive nas grandes capitais, o voto de cabresto continua existindo.

Um ótimo fim de semana para todos.

Ivan Sant’Anna
 

Nota do Editor: Além de assinar a Mercadores da Noite, que sai aos sábados aqui e em podcast nas plataformas Spotify e Deezer etc., Ivan Sant'Anna também escreve todas as segundas, terças e quintas-feiras a coluna Warm Up PRO, que você pode conhecer clicando aqui!

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Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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