Mercadores da Noite #290: Mil e uma crônicas para a Inversa (3ª parte)

20 de agosto de 2022
Na semana passada, publiquei algumas passagens de minhas crônicas da coluna Warm Up Pro, cobrindo meus primeiros dois anos e meio na Inversa. Hoje transcrevo trechos de artigos escritos entre maio de 2019 e meados de 2020.

Olá, leitor(a),

Na semana passada, publiquei algumas passagens de minhas crônicas da coluna Warm Up Pro, cobrindo meus primeiros dois anos e meio na Inversa. Hoje transcrevo trechos de artigos escritos entre maio de 2019 e meados de 2020.

 

Reflexões de um ex-defunto

“Atualmente, a expectativa de vida de um homem brasileiro é de 72,5 anos. Portanto, teoricamente, morri em novembro de 2015.

Até que foi um momento legal. Acabara de lançar o livro Bateau Mouche e vendido os direitos de filmagem para uma produtora.

Embora a fita não tenha saído (sei lá se vai sair), recebi uma boa grana. Minha morte foi noticiada no JN, o que não teria acontecido em 1983.

Só que aí há uma distorção. Embora a perspectiva de vida de um brasileiro do sexo masculino ao nascer seja de 72 anos e seis meses, para quem já tem 80 (faltam 12 meses para eu chegar lá) é de 89 e meio.

Agora é definitivo. Vou morrer em 2029. Ainda verei duas copas do mundo e, se o cérebro não me aprontar uma falseta, escreverei mais uns cinco livros e 500 crônicas como esta.”

 

Blind Trust

“Eu, Ivan Sant'Anna, não gosto de teorias conspiratórias. Mas, por outro lado, sou ficcionista.

Digamos que esteja escrevendo uma minissérie na qual o principal personagem é o presidente dos Estados Unidos. Quem sabe um plágio de House of Cards, já que a outra foi encerrada por motivos de força maior.

Nessa ficção, o ocupante do Salão Oval da Casa Branca faz o mesmo que o Trump de minha fértil imaginação. Ganha dinheiro na Bolsa e no mercado de moedas comprando e vendendo ativos que se movem em função de suas próprias decisões.

Há um ditado chinês que diz:

Um cavalo ganhou: sorte.

Ganhou pela segunda vez: coincidência.

Ganhou pela terceira: aposte no cavalo.

Sugiro ao caro amigo leitor que, sempre que Donald Trump ameaçar um país com sanções, compre ações na queda que se seguir ao fato.

Realize lucro quando ele declarar que pensou melhor e desistiu.
 


Gerontocracia americana

“Nos Estados Unidos, essa época é também conhecida como Driving Season. Os carros dos veranistas entopem as estradas.

Em Wall Street e Chicago, o movimento dos mercados cai muito. Só volta a crescer na terça-feira 3 setembro, dia seguinte ao Labor Day.

Dois meses mais tarde, em 3 de novembro, quando faltará exatamente um ano para as eleições de 2020, inicia-se o aquecimento para a corrida presidencial.

Do lado republicano, Donald Trump deverá se candidatar à reeleição, como é de praxe. Nas hostes dos oposicionistas democratas, há uma salada de pretendentes à Casa Branca, salada essa que abrange todos os vieses ideológicos, desde conservadores até políticos de esquerda, coisa rara (se não inédita) por lá.

Embora seja meio cedo para esse tipo de especulação, no momento os favoritos para encarar o desafio a Trump são o ex-vice-presidente Joe Biden e o socialista Bernie Sanders.

Supondo que o mandato presidencial 2021/2025 será exercido por um desses três (Trump, Biden ou Sanders), teremos a continuação de uma linhagem geriátrica na presidência americana.

No dia da posse, 20 de janeiro de 2021, Donald Trump terá 74 anos; Joe Biden, 78; e Bernie Sanders, 79. Ao término do mandato, respectivamente 78, 82 e 83.

Prevalecendo uma dessas três hipóteses, os Estados Unidos serão governados por um ancião. Algo como uma gerontocracia. Digo isso com certo desconforto porque sou mais velho do que os três.”

 

Alavancagem é para profissionais

“Embora quase todas as grandes fortunas obtidas por traders nacionais e internacionais de sucesso tenham sido alcançadas por alavancagem, nenhum deles era amador.

Portanto, se você – caso viva de outra atividade e opera apenas nos momentos de folga – quiser investir em renda variável, cuide de comprar ações à vista ou calls (opções de compra) e puts (de venda). Nestes casos, o máximo que poderá perder é todo o valor investido.

Por outro lado, se está decidido a dedicar sua vida a lidar com futuros e demais derivativos, dedicando a eles tempo integral, você, ainda que não se dê conta disso, tornou-se um profissional. Sim, profissional. Mesmo que atue como home broker de sua chácara no interior de Minas, tendo, é claro, à disposição uma conexão rápida e confiável de internet.

Tem mais: para ser bem-sucedido, precisará fazer cursos, assinar publicações a respeito dos diversos mercados e dedicar-se full time a eles.”

 

A história da vaca morta

“Na época em que eu operava boi gordo na Bolsa de Mercadorias de São Paulo (Bolsinha) e estava numa posição comprada, adorava quando via, no Jornal Nacional, a imagem da ossada de uma vaca ou boi morto num pasto esturricado na época da entressafra (estiagem).

Acho até que usavam sempre a mesma vaca, pescada em um arquivo (que chamam de stock shot), mas a ossada me dava uma sensação de alívio.”

 

O mercado não é um cassino

“Na terça-feira 2 de novembro de 1976, estava eu com vários amigos num cassino de Lake Tahoe, na divisa da Califórnia com o estado de Nevada. O grupo (éramos onze, todos homens) comemorava uma maxidesvalorização do cruzeiro, em razão da qual havíamos dado uma porrada no mercado de ORTNs cambiais.

Pois bem, havíamos adquirido ingressos para um show de Sammy Davis Jr. no teatro do cassino, cuja entrada ficava quase ao lado da mesa de roleta onde eu estava havia umas seis horas apostando no 11 preto e cercando-o por todos os lados (quem já jogou roleta sabe do que estou falando).

Alguém da turma me chamou:

‘Vai começar o show, Ivan. Vamos pro teatro.’

‘Sabe duma coisa, cara. Esse Sammy Davis é muito chato’, respondi com a maior sem-cerimônia. ‘Prefiro ficar aqui na minha roleta. Ainda mais agora que o 11 começou a entrar.’

Se perdi uns 40 dólares do ingresso do teatro, deixei pelo menos trinta vezes isso na mesa de jogo enquanto o Sammy cantava a 50 passos de distância.

Durante muitos anos, eu não podia ver uma roleta que entregava até as calças, se eles a trocassem por fichas.

Montevidéu, Punta del Leste, Las Vegas, Veneza, Jamaica, Bahamas, San Juan de Puerto Rico, Curaçau... tem dinheiro meu espalhado por todos esses lugares. Ainda bem que naquela época eles não aceitavam cartões de crédito.

A última vez que me depenaram foi em 1982, num cassino clandestino de Campos do Jordão. Aí parei de vez. Nunca entrei num bingo, não jogo no bicho e não aposto na mega sena.”

 

Diamantes são eternos; empresas, não

“Em 1995, o Baring Brothers era o banco mais antigo do mundo, com 233 anos de existência. Só que havia uma excrescência, que seus diretores não notaram. Ou, se notaram, fingiram não perceber. A filial de Cingapura gerava mais lucro do que todas as demais unidades somadas.

Esses resultados fantásticos proviam de uma só pessoa, o trader Nick Leeson, um (até então) gênio, cujas paradas alavancadíssimas no índice Nikkei futuro da bolsa de Tóquio, negociado na Simex, engordavam o bônus anual de toda a diretoria.

Veio então o terremoto de Kobe, em 17 de janeiro de 1995. A bolsa levou um tombaço.

Ao invés de liquidar sua posição, Leeson, que estava comprado até o limite, dobrou a aposta. Para isso, usou de um estratagema. Lançou a operação na conta erro que, por motivos óbvios, nunca tem limite, já que se trata de uma rubrica contábil na qual são lançados os trades feitos por engano. Compra ao invés de venda e vice-versa.

Tóquio continuou caindo e o Baring Brothers quebrou. Na verdade, não chegou a ir à falência. Foi comprado pelo valor simbólico de uma libra esterlina pelo banco holandês ING. Mas os acionistas perderam tudo que tinham aplicado na sociedade.”

 

Mercado de um fundamento só

Obs.: esta crônica é importante porque foi uma das primeiras vezes em que mencionei a Covid, que tinha surgido na China na passagem de ano de 2019 para 2020.

“Quando disse, em minha Warm Up de ontem, publicada pela Inversa antes da abertura da Bolsa, que acreditava em uma realização de lucros na B3, me baseara numa declaração, feita no domingo pelo líder chinês Xi Jinping, que o coronavírus estava se alastrando rapidamente.

Encerrado o mercado, viu-se que não foi apenas uma correção. Como o Ibovespa caiu mais de 3%, o que se pode deduzir é que a expectativa dos traders com relação à retração da economia chinesa é muito pessimista. 

O mesmo aconteceu com os mercados asiáticos, europeus e americanos. Há um medo generalizado de que a China tenha de ser isolada (ao menos parcialmente) para evitar que o vírus se propague amplamente pelo mundo.

Bolsas, commodities, moedas, taxas de juros, os traders vão olhar somente para isso.”
 


Filme de terror

Obs.: este texto foi publicado em 2020, no auge da Covid-19, já espalhada pelo mundo.

“Por ter escrito quatro livros-reportagem sobre acidentes aéreos, além de ser piloto privado desde os 18 anos, sou conhecido por boa parte dos aviadores brasileiros.

O Brasil não permite que suas empresas aéreas contratem pilotos estrangeiros, mas a recíproca não é verdadeira. Várias companhias asiáticas têm brasileiros em seus quadros de comandantes. Por sinal, eles gozam de grande prestígio.

Um desses aviadores, cujo nome vou omitir, assim como não irei revelar em que país da Ásia ele trabalha, respondendo, pelo WhatsApp, a uma indagação minha sobre como iam as coisas, disse:

‘Oi, Ivan, bom dia. Eu estou aqui em (uma capital do Oriente Médio). Tá sinistro o negócio. Fui um dos poucos pilotos expatriados que acabaram ficando. Além de mim, tem mais uns 15 pilotos aqui no hotel, comparados com os 75 que costumavam ficar aqui também. A maioria dos expatriados e dos locais também está de licença sem vencimentos, por um motivo ou por outro. Alguns estavam de folga em suas cidades quando foram bloqueados, não conseguiram voltar devido aos fechamentos das fronteiras de vários países. Outros foram postos em licença sem vencimento por terem mais de 60 anos, um grupo de risco mais sujeito a ser afetado por uma contaminação, uma medida de proteção até para a empresa. Outros pediram licença sem vencimentos, porque quiseram voltar para seus países e, finalmente, outros pelos mais diversos motivos, sistemas de emissão de documentos de aeroportos, concessão de licenças estarem quase paradas. Chega um momento em que expiram essas autorizações de emissões de cartões de identificação para transitar dentro dos aeroportos. Então o cara fica parado também. Eu tenho feito voos cargueiros, a única coisa que sobrou. Para você ter uma ideia, daqui nós tínhamos 385 destinos internacionais. Cancelaram 300. A princípio ficaram cinco voos de passageiros e, desses cinco, parece que não tem mais nenhum. Isso aí eu não acompanhei direito. Parece que estavam até cancelando esses cinco voos aí.

Os voos que estão sendo feitos agora pelos pilotos remanescentes que continuam trabalhando, eu, por exemplo, são voos de carga. Tanto em voos totalmente cargueiros, versão total de carga, ou então nos próprios aviões de passageiros que carregam carga nos porões. Ou então até ali em cima eles fizeram modificações para aguentar cargas leves nos casos em que está tudo lotado lá embaixo. Então a gente tem feito alguns desses voos aí. Noventa e cinco por cento dos aviões que estão no céu são de carga. No final do mês de março ainda tava... até o dia 20 tava tudo normal aqui. Fiz um voo para Narita (Tóquio), fiz um voo para Taiwan. Fiz treinamentos em simuladores. Depois começaram a cancelar. Cancelaram todos os voos. O centro de treinamento também foi fechado. Não tem mais voos de simuladores. Não tem mais cursos de promoções para aviões novos, nem promoções de copilotos para comandantes. Não tem nada. Tá fechado. É um dos maiores centros de treinamento que existem. Completamente fechado. E aí a partir do dia 22 cancelaram lá os voos meus, que eu tinha para Casablanca. Eu tinha um outro voo para Toronto. Foram todos cancelados. Aí, em troca, eu fiz um voo para Amã (capital da Jordânia), de carga, levando equipamentos médicos. Outro voo de carga eu fiz pra Riad (Arábia Saudita). E agora, este mês, estão pagando a gente uns 30% do salário. A gente fica praticamente uns 20 dias parado. Ou mais. E faz aí um voo, às vezes dois, cada piloto. Mesmo tendo ficado só 20% dos pilotos em atividade, mesmo assim a ociosidade é grande. Tem poucos voos para o número de pilotos que ficaram. Este mês (abril) eu farei só um voo de carga para o Uzbequistão e dali eu faço três voos bate e volta entre o Uzbequistão e Xangai. Isso vai levar uns cinco dias e aí eu volto para cá. E aí acabou meu mês também.

Você voando assim à noite, de madrugada, fazendo voo de carga, é um troço sinistro. Você ouve na fonia um avião, às vezes dois aviões, num voo aí de quatro, cinco horas de duração. Você pousa e decola de aeroportos completamente parados, com assim dezenas e até centenas de aviões, tipo o aeroporto novo daqui. Tem 250 aviões parados ali, pelos fingers, nas posições remotas. Mas escuros, apagados, sem energia, porque os aviões estão desativados ali, sem movimento. Então não tem assim usina de energia elétrica para alimentá-los e ficam totalmente escuros, com as portas fechadas, com tampas nos motores. E aí você fica taxiando ali, sozinho, sem movimento nenhum. Num táxi de cinco minutos, você já está pronto para decolar. Quando tava tudo normal você entrava numa fila ali de cinco ou seis aviões para decolar daquela pista. Era um movimento enorme e agora não tem. Parece um aeroporto fantasma mesmo. O terminal de passageiros, completamente vazio. Tudo fechado, as posições de check-in... Tem um cara ali na Imigração para atender eventualmente quem passa ali. É impressionante. É um filme de terror.

No dia a dia, a gente fica isolado num hotel daqui, um hotel bem bacana mas a gente não pode usar nada. É um hotel que tem piscina indoor, outdoor. Só que tá tudo fechado. Sauna, salão de ginástica enorme, quadras de squash, tudo fechado. Não se pode usar nada. Os restaurantes não podem ser usados. Você pede pelo telefone, room service, desde o breakfast até o jantar. Aqui ainda tá podendo sair na rua, caminhar, ir a supermercado e farmácia. Ruas vazias, completamente vazias. Outro dia, eu fui no consulado da Itália, renovei meu passaporte italiano (ele tem dupla nacionalidade). Tava completamente sozinho.

Então é isso aí. A família está no Brasil, bem, no condomínio, com segurança e tal. A família que me deu força para continuar aqui para tentar segurar o emprego aqui. Acho que quem saiu de licença vai custar muito tempo pra conseguir voltar, e voltar a trabalhar. Eu, se tudo der certo, e se a companhia não quebrar, eu já estou aqui e continuo trabalhando. Assim... eu não vejo muito... a gente sabe que tá brabo, que o número de casos (de coronavírus) está aumentando, o número de mortes. Então está aumentando, mas já teve caso aqui no hotel de gente positiva, pelo menos o de uma pilota, e ela voltou para a Alemanha, optou por voltar e lá ela confirmou o positivo, com sintomas leves. E aqui não ficou mais ninguém contaminado. Então, eu não sei, mas, pelo que dizem, deveriam ter sido contaminadas mais pessoas aqui no hotel. Só um único caso que teve e ela (a pilota alemã) está bem. Em cinco dias já estava bem, com quase nada de sintomas. Então são essas as minhas impressões.”

Com esta Os Mercadores da Noite de hoje, termino minha série de retrospectivas.

Até o próximo sábado e um ótimo fim de semana para todos.

Ivan Sant’Anna
 

Nota do Editor: Além de assinar a Mercadores da Noite, que sai aos sábados aqui e em podcast nas plataformas Spotify e Deezer etc., Ivan Sant'Anna também escreve todas as segundas, terças e quintas-feiras a coluna Warm Up PRO, que você pode conhecer clicando aqui!

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

A Inv é uma Casa de Análise regulada pela CVM e credenciada pela APIMEC. Produzimos e publicamos conteúdo direcionado à análise de valores mobiliários, finanças e economia.
 
Adotamos regras, diretrizes e procedimentos estabelecidos pela Comissão de Valores Mobiliários em sua Resolução nº 20/2021 e Políticas Internas implantadas para assegurar a qualidade do que entregamos.
 
Nossos analistas realizam suas atividades com independência, comprometidos com a busca por informações idôneas e fidedignas, e cada relatório reflete exclusivamente a opinião pessoal do signatário.
 
O conteúdo produzido pela Inv não oferece garantia de resultado futuro ou isenção de risco.
 
O material que produzimos é protegido pela Lei de Direitos Autorais para uso exclusivo de seu destinatário. Vedada sua reprodução ou distribuição, no todo ou em parte, sem prévia e expressa autorização da Inversa.
 
Analista de Valores Mobiliários responsável (Resolução CVM n.º 20/2021): Nícolas Merola - CNPI Nº: EM-2240