Mercadores da Noite #289: Mil e uma crônicas para a Inversa (2ª parte)

13 de agosto de 2022
Há duas semanas, publiquei alguns dos melhores trechos, de crônicas antigas da coluna Os mercadores da noite. Hoje estou fazendo a mesma coisa, só que dos dois primeiros anos da Warm Up Pro, que a Inv publica todas as segundas, terças e quintas-feiras.

Olá, leitor(a),

Há duas semanas, publiquei alguns dos melhores trechos, segundo meus critérios, de crônicas antigas da coluna Os mercadores da noite.

Hoje estou fazendo a mesma coisa, só que extraindo passagens dos dois primeiros anos da Warm Up Pro, que a Inv publica todas as segundas, terças e quintas-feiras.

Vamos a elas:
 

Testemunha ocular da história:

Outro dia conversávamos aqui na Inversa sobre o título da série O investidor do século, protagonizada por mim.

Como estou no mercado desde 1958, portanto há 60 anos, esse nome pode representar alguém que vem atuando nas bolsas e futuros durante todo esse tempo. Pode também ter uma conotação simbólica, do tipo um personagem ficcional que testemunhou os acontecimentos nessas seis décadas. Um Julius Clarence ou um Forrest Gump.

Há muitos anos, quando minha filha caçula era pequena, a gente travou a seguinte conversa:

“Papai, você é tão velho!”

“Por quê? Porque eu conheço história?”

“Não”, ela completou. “Porque você viveu ela”.
 


 

Atentado em Juiz de Fora:

Por volta das 15:40 desta sexta-feira, durante uma passeata no Centro da cidade mineira de Juiz de Fora, o candidato à presidência da República Jair Bolsonaro, que era carregado nos ombros por um militante, foi esfaqueado por um fanático, Adelio Bispo de Oliveira.

No início dado como ferimentos superficiais, logo informações vindas da Santa Casa de Misericórdia local, onde Bolsonaro foi atendido, deram conta de que a faca atingiu parte do fígado, do pulmão e da alça do intestino do capitão. (...)

(...) Passadas três horas do atentado a Jair Bolsonaro, tudo indica que ele irá sobreviver ao atentado de hoje em Juiz de Fora, embora fique fora de combate por algum tempo.

Isso poderá mudar totalmente a tendência do eleitor do segundo turno, onde Bolsonaro já tinha vaga cativa.

A facada que perfurou o abdômen do deputado atingiu em cheio outros quatro candidatos: Fernando Haddad, do Partido dos Trabalhadores, Geraldo Alckmin (que conduzia sua campanha com ataques a Bolsonaro), Ciro Gomes e Marina Silva, ou seja, os potenciais adversários do capitão no 2º turno.
 


 

O Boeing derrubou a Boeing, que derrubou o Dow, que derrubou o Ibovespa:

Anteontem, segunda-feira, 29 de outubro, um Boeing 737 Max 8 da Lion Air caiu nas águas do mar de Java, minutos após decolar do Aeroporto Internacional Soekarno-Hatta, de Jacarta, capital da Indonésia. Todas as 189 pessoas a bordo morreram.

Por causa do desastre, as ações da Boeing, uma das 30 que compõem o Dow Jones Industrial, caíram sete por cento na Bolsa de Valores de Nova York.

Se a aeronave tivesse sido um Boeing 737-700 ou 737-800, a tragédia não teria afetado a cotação das ações da empresa, ou afetado muito pouco, já que se tratam de modelos que voam há bastante tempo e foram mais do que testados e aprovados.

Acontece que o Max 8 é um projeto recente, tendo o primeiro voo regular de passageiros ocorrido em maio de 2017. Nesses casos, sempre fica a desconfiança de que possa ter havido algum erro de concepção.

Isso já aconteceu com diversos tipos de aeronaves, sendo os casos mais emblemáticos o do Comet 2 da De Havilland, em 1953, com dois desastres fatais (perda das asas em pleno voo), e o do Electra 1, da Lockheed, também com dois acidentes causados por panes estruturais, em 1959 e 1960, o que provocou o recolhimento de todos os turboélices da série em operação no mundo até que a falha fosse descoberta e solucionada.

Portanto, nada mais natural do que as ações da Boeing terem sofrido um crash, que contaminou a bolsa de valores de Nova York, fazendo com que o Dow Jones perdesse mais de 200 pontos. Tal como vem acontecendo há várias semanas, as perdas da NYSE influenciaram o Ibovespa, que caiu 2,24%.
 


  

O dia em que descobri que não sou imortal:

Pois bem, ali começou minha grande depressão, que só foi terminar em janeiro de 1990, após me tratar, simultaneamente, com um psiquiatra, Jorge Jaber (que me inspirou a criar o doutor Rebaj de Os mercadores da noite) e uma analista, Lina Zapulla Bandeira de Mello (que já nos deixou há muitos anos). Fora um grupo de dependentes químicos que se reunia todas as segundas-feiras no People Down, uma “boate” do Baixo Leblon. Pode uma coisa dessas? Curar dependência enchendo a cara num bar!

Hoje em dia tenho profunda convicção que minha psique padecia de medo. Medo de morrer passando por dificuldades materiais, medo de continuar vivendo depois que o dinheiro acabasse, medo de ficar incapacitado na enfermaria (ou no corredor) de um hospital público.

Foi quando comecei a poupar. Ganhando muito ou quase nada, meus livros fazendo sucesso ou fracassando, de qualquer dinheiro que recebo, mesmo que sejam 100 reais, guardo um pouco em investimento seguro.
 


 

Nossa última viagem:

Investimentos devem ter objetivos. Quem sabe futuras faculdades no exterior para os filhos; quem sabe uma casa de repouso em Vermont no final da vida. Ou, simplesmente, a garantia de uma velhice sem desassossegos.

Já desinvestir implica riscos. É o que o casal aqui vai correr ao trocar dois ou três anos de despesas normais por 119 dias na cabine, nos passadiços, nos restaurantes, nos lounges e nos bares de um transatlântico de luxo.

Fico me imaginando, após a ceia da meia-noite, sentado ao deque, abraçado com a Ciça, drinques coloridos nas mãos, tilintando as pedrinhas de gelos com os dedos. Ouvimos as ondas do Pacífico Sul se chocarem contra o costado do navio. Contemplamos as estrelas que lá, dizem os que já foram, se multiplicam até o infinito do espaço sideral.
 


 

Pode isso, Arnaldo?:

Arnaldo Cézar Coelho, árbitro e comentarista de futebol, empresário de telecomunicações e do mercado financeiro, hiper bem-sucedido em todas essas atividades, é meu amigo há meio século. Isso sem contar a época em que eu o conhecia de vê-lo apitando jogos e ele talvez nem soubesse de minha existência.

Pois bem, anteontem o Arnaldo me ligou para conversar fiado. Papo vai, papo vem, ele me contou um episódio ocorrido em 1971.

Para começar, vejamos alguns dos personagens: O próprio Arnaldo Cézar, que trabalhava como operador de clientes na trading desk da Multiplic, Antônio José de Almeida Carneiro, mais conhecido como Bode, sócio da corretora e chefe da mesa de operações, Jorge Paulo Lemann, da Garantia, Eduardo Bicalho, da Omega, outros mercadores de igual projeção e um liquidante da Multiplic.

Para quem não sabe, liquidante era o cara que, como o nome indica, liquidava as operações. Títulos para lá, cheque para cá e vice-versa. Isso na época pré-Selic, pré-Cetip e pré mercados eletrônicos.

O Bode, que todo mundo considerava o mago do mercado, de todos os mercados, o mais esperto dos espertos, costumava chegar cedo na Multiplic. Antes que a Bolsa e o open market abrissem, ele conversava com seus concorrentes, que aqui exemplifiquei com o Lemann e o Bicalho. Mas havia outros, inclusive das mesas de operação do Banco Central e dos grandes bancos.

Nessa troca de ideias, eles procuravam antecipar as taxas de juros e de câmbio que seriam praticadas naquele dia. Formava-se uma espécie de consenso.

Antônio José Carneiro era, como continua sendo até hoje, um cara simples vindo do interior de Minas (Ponte Nova) e mantinha hábitos coerentes com suas origens na roça. Entre eles, o de  usar sapatos Vulcabras, de sola de borracha, artigo barato, vendido nas sapatarias da Saara, região de comércio popular semelhante ao da rua 25 de Março em São Paulo.

Estava o Bode conversando com seus pares quando vê passando nas proximidades da sala de operações o chefe dos liquidantes. Gritou para ele:

Compra Vulcabras para mim!”

Nas demais corretoras, não só os caras que conversavam com o Bode, como os que os rodeavam, ouviram claramente:

Compra Vulcabras!”

“O Bode tá comprando Vulcabras!”; “Deve tá sabendo de alguma coisa!”; “Ele só vai na boa”. Com os acréscimos e os exageros de praxe (“vai dar bonificação”; “é a porrada do ano”), a notícia se espalhou pelas demais corretoras. Afinal de contas, Vulcabras era uma ação de boa liquidez.

Meia hora mais tarde, no trading floor da Bolsa, os gritos que mais se ouviam eram:

“Vulcabras, compro!”; “Vulcabras, compro lote!; “Vulcabras, compro lote a mercado!”

Antônio José de Almeida Carneiro, o Bode, não ganhou um centavo sequer nessa especulação, feita por sua inspiração fortuita mas à sua revelia. Limitou-se a receber, de seu liquidante-chefe, um par de Vulcabras 752 legítimo.
 


 

Asdrúbal, o “Pé Trocado” (o plágio do plágio)

Este texto foi publicado em 8 de fevereiro de 2000, quando eu escrevia para a Resenha BM&F. Portanto trata-se de um autoplágio. Mas como acredito que a maioria dos leitores da Warm Up Pro jamais leu a historinha, vou repeti-la, pois acho que continua atual.

Antes de mais nada, é bom lembrar que naquela época os negócios em Bolsa eram feitos no pregão viva-voz e que as ordens eram passadas para os floor traders na Bolsa.

Como está o mercado?”

Ainda não está, Asdrúbal”, respondeu Evandro, no pregão da Bovespa. “Só abre daqui a um minuto.”

Ah, desculpe. É que fico louco para que comece logo.”

Asdrúbal descarregou a impaciência enroscando e desenroscando alguns fios de cabelo, cacoete que tinha desde os tempos de criança.

Finalmente a voz de Evandro emergiu da outra ponta da linha.

Abriu, Asdrúbal, abriu. Comprador a 1.120 e vendedor a 1.140.”

Compra 20 lotes a 110.”

Eu disse 120 com 140. Se tem pagão a 20, como vou comprar a 10?”

Tá bom. Vai a 20.” E, segundos depois: “Comprou? Comprou.”

“Vinte e cinco com 35, Asdrúbal. É o mercado.

Vai, vai a 25”, e logo quis saber: “Comprou, comprou?”

Não. Negócios a 30. Negócios a 35. Comprador de 100 lotes a 140.”

Vai a mercado, Evandro.”

Comprei 20 a 160”, informou o operador de pregão.

Puxa, Evandro. Você não disse que tinha pagão a 40.”

Pagão, Asdrúbal. Comprador. Vendedor só a 160. E agora só a 70.  Sessenta e cinco com 70. É esse o mercado. Tem muito comprador na roda. Vai subir mais.”

Foi como se tivesse oferecido um copo de uísque a um alcoólatra.

Compra 50 a 70. Não! Vai a mercado. Cinquenta a mercado. Compra 80 pra inteirar 100 lotes.”

Seguiram-se alguns silêncios de tensa expectativa.

“Comprei 50 a 175 e mais 30 a 180.”

Certo. Que alívio, amigão. Mas me dá o mercado.” Asdrúbal levantou-se da cadeira. “Como é que está o mercado?”, insistiu.

Vendedor a 60. Vendedor de lote a 160. Negócios a 1.160.”

Mas você não disse que o mercado era comprador?”

Era, Asdrúbal, mas não é mais. Tem vendedor a 160, vendedor a 150. Tem um grande vendedor na roda. Negócios a 40, vendedor a 130, vendedor a 120. Negócios a 100. Tá saindo a 1.100. O mercado vai desabar.”

Caramba, Evandro, eu comprei a… deixe-me ver, comprei 20 a 60, 50 a 75 e 30 a 80. Estou comprado em 100 a 1.173 e meio. Como é que está agora?”

Vendedor de 500 lotes a 1.080. Não quero parecer alarmista, mas acho que está acontecendo um crash.”

Vende 200 a 1.080.”

Mas, Asdrúbal, você só comprou 100 lotes.”

“Eu sei, Evandro, quero vender em dobro. Quero ficar short em 100. Surfar na onda desse crash. Como é que está agora?”

Vendedor a 060. Mil e sessenta.”

Não disse, cara. Você está perdendo o mercado. Vai nos 60. Vende 200 a 060.

Vendedor a 55.”

Vai a mercado. Evandro, vende 200 a mercado. Não! Vende 300. Vende 300 lotes a mercado.”

O operador de pregão agiu rápido.

Vendeu, Asdrúbal. Tudo de uma tacada só. Vendeu 300 a 10.”

Trezentos a cento e 10. Legal, cara. Parabéns!”

Não, Asdrúbal. Mil e dez. E não mil cento e dez.”

Mas como mil e dez? Tudo bem, Evandro. Entendi. O mercado está sofrendo um colapso. Ainda bem que estou short. Como é que ficou agora?”

Virou de novo. Tem comprador a 1.030. Comprador 1.040. Pagão de lote a 1.060. Asdrúbal, tem um mão forte pagando 1.100. Acho que estamos no início de um bull market.”

Naquela manhã, o mercado fez um novo high a 1.190. E continuou subindo. Asdrúbal, que, como vimos, acompanhara o zigue-zague operando em zague-zigue, teve de estopar sua posição. Era afobado, mas não louco.
 

 


Aposte na mega sena e rasgue o comprovante antes do sorteio

Sim, amigo, não enlouqueci. Minha sugestão é que você, só para curtir com a cara dos outros, faça uma aposta mínima na mega sena e rasgue o comprovante antes do sorteio.

A possibilidade da combinação de números que escolheu sair dos globos do caminhão da loteria é menor do que a sua de morrer antes de acabar de ler esta crônica.

Dando números à minha argumentação, a probabilidade de faturar a bolada com uma aposta mínima é de uma em 50.063.860.

Como as chances de morrer em um desastre de avião (escrevi isso outro dia) são de uma em 11 milhões, se você aposta na sena deveria ficar plantado em casa. Sem pisar em tapete solto ou ladrilho molhado.
 

 


Ivan Sant’Anna, da Inversa:

Há alguns dias cruzei com um comandante da Latam numa das escadas rolantes do aeroporto de Congonhas. Eu descia para o andar inferior de embarque (aquele no qual a gente pensa que vai entrar num avião e entra em um ônibus) e ele subia.

Ao me ver, o piloto gritou:

“Ivan Sant'Anna, da Inversa, leio todos os seus artigos.”

É evidente que esse tipo de gratificação espontânea me estimula a escrever com cada vez mais amor e prazer.

Anteontem a Inversa completou dois anos de funcionamento. Entre todas as empresas com as quais tive ligação ao longo dos últimos 61 anos, é apenas a segunda em que trabalhei desde o primeiro dia. A outra foi a corretora Fator (atual Banco Fator), que fundei em 1967.
 

Tenham um ótimo final se semana!

Ivan Sant’Anna
 

Nota do Editor: Além de assinar a Mercadores da Noite, que sai aos sábados aqui e em podcast nas plataformas Spotify e Deezer etc., Ivan Sant'Anna também escreve todas as segundas, terças e quintas-feiras a coluna Warm Up PRO, que você pode conhecer clicando aqui!

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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