Mercadores da Noite #40 - Meus momentos de sorte

15 de janeiro de 2018
A eguinha energia

Mercadores da Noite

Caro leitor,

Já dizia o antológico Nelson Rodrigues que “sem sorte não se come nem um Chicabom". "Você pode se engasgar com o palito ou ser atropelado pela carrocinha”, completava o Anjo Pornográfico.

Eu tinha uns 13 anos de idade, estudava em um internato de padres (na verdade, irmãos maristas) no Rio e nos fins de semana me dividia entre jogos no Maracanã e corridas de cavalos no Hipódromo da Gávea, estas últimas terminantemente proibidas por minha mãe, que tinha horror a jogo.

Essa proibição não se constituía em nenhum empecilho para mim. Era só dizer que estava indo ao futebol ou ao cinema, pegava um bonde (o 10, Gávea, ou o 11, Leblon) e descia no Jóquei.

Como quase todo mundo que aposta nas patas dos cavalos, eu era um perdedor contumaz. Quase sempre deixava nos guichês do hipódromo toda a “mesada semanal” (essa expressão não faz muito sentido, mas era assim que a gente falava: “mesada”, paga todo sábado). Ao longo da semana, no internato dos padres, não tinha nem uns trocados para comprar um Grapette e um sanduíche de mortadela na cantina.

Em uma dessas minhas idas ao Jockey apostei, por engano, cinco cruzeiros numa égua, número 4, chamada Energia. Quando voltei para o meu lugar nas gerais constatei meu erro. E fiquei desolado ao ver que a Energia pagava duzentos por um. E cavalo (ou égua) que paga 200 por um sempre chega por último.

Começou o páreo. De longe não dava para ver onde a égua estava, mas o Jockey Club transmitia, na voz do lendário locutor Teófilo Vasconcelos, o andamento da corrida. Até que Vasconcelos começou a falar no nome de minha eguinha. E eu a vi atropelando por fora. Passou pelas gerais, em seguida pelas tribunas especiais e cruzou o disco em primeiro em frente às sociais.

Eu quase que não acreditei quando, no guichê, o pagador me deu uma nota de um “Cabral” (um conto de réis). Eu estava rico. E poderia realizar o grande sonho de minha vida.

Geralmente, na volta para casa no Humaitá eu, que costumava deixar até o último centavo no prado, ia pulando do estribo do reboque para o do bonde e do bonde para o do reboque, sempre fugindo dos trocadores. Pois naquela tarde gloriosa voltei de táxi. Claro que desci a umas quatro quadras de onde eu morava para não ser flagrado por minha mãe, que tinha um olhar mistura de periscópio e visão raio-X do Super-homem.

Por uma estupidez que jamais conseguirei entender, guardei o brilhoso Cabral junto com a pule vencedora com o carimbo “Pago”. A velha achou o dinheiro e me obrigou a doá-lo, todinho, às missões de catequese dos irmãos maristas na África.

Na página 27 de seu livro O conto zero e outras histórias, meu irmão, Sérgio Sant’Anna, que considero o melhor escritor do Brasil (não é à toa que ganha o prêmio Jabuti de melhor contista, ano sim ano também) narra o fato:

“Um dia meu irmão acertou num páreo um azarão, a égua Energia, que pagou duzentos por um. E como meu irmão jogara cinco, saiu com mil cruzeiros. Ele ainda estudava interno e a mãe descobriu o dinheiro e obrigou o mano a dá-lo para as missões dos maristas na África. E isso tornava tudo possível, meu irmão puto da vida dizia: ‘eu acerto um azarão e o dinheiro vai parar na mão dos africanos, isso se os maristas não ficarem com ele".

No livro, o Sérgio, não satisfeito com sua inconfidência, ainda comete a desfaçatez de revelar meu sonho:

“... meu irmão”, ele entrega na página 22, “estava juntando o dinheiro das mesadas para comer uma corista secundária de um teatro de revistas da praça Tiradentes.”

A esta altura o leitor deve estar se perguntando: “Por que o Ivan intitula esta newsletter de Meus momentos de sorte se não ficou com um centavo da vitória da Energia?" “Só se ele, agora já no segundo tempo da prorrogação da vida, acha que aquela ‘doação’ vai lhe garantir o céu.”

Nada mais inexato. Para quem ainda não sabe, sou ateu e não acredito em vida após morte. E considero sorte ter apostado numa égua que pagou 200 por um. O resto da história (deixar o dinheiro mal guardado e acompanhado da pule vencedora) foi simplesmente burrice.

Agora vamos a um segundo caso no qual o que aconteceu foi sorte pura. Melhor, sorte grande.

Em 1969, quando eu acabara de regressar dos Estados Unidos, comprei, na bolsa do Rio, ações ordinárias nominativas da Petrobras. Foi um lote grande ao preço de 30 centavos por ação.

Acontece que ações ordinárias da Petrobras só podem (ou pelo menos só podiam naquela época) ser compradas por brasileiros. E as ações que comprei vieram no nome de um estrangeiro que não poderia tê-las adquirido. Então a transferência para o meu nome foi bloqueada pelo departamento de acionistas da estatal.

“Não tenho nada a ver com isso”, eu chiava, com toda razão. “Comprei na Bolsa, em público pregão. Se foi um gringo que as vendeu não é problema meu. Quero meus papéis (eles haviam dobrado de preço e eu estava louco para realizar o lucro).

A Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, a Petrobras, a Caixa de Liquidação, todos estavam convictos de que eu estava coberto de razão. Mas não havia como transferir as cautelas do nome de um estrangeiro (que, repito, não poderia tê-las adquirido) para o meu.

O impasse durou dois anos — até meados de 1971 —, quando, finalmente, nos livros de acionistas da Petrobras, as ações foram transferidas para mim diretamente do acionista que vendeu para o gringo.

A essa altura o papel, maravilha das maravilhas, estava a Cr$ 13,00. Para os que não vivenciaram aqueles tempos, vale dizer quase todo mundo do mercado de hoje, o Cr$ era o símbolo do cruzeiro, moeda que valia para pagar a pule de uma égua vencedora, os serviços de uma corista desinibida e para cotar ações em bolsa.

Quando pus as mãos nas cautelas, dei imediatamente a ordem de venda, a mercado. Com o dinheiro pude comprar uma cobertura duplex em Ipanema, com piscina e vista para o mar.

A partir desse dia, a Petrobras, junto com o restante da Bolsa, caiu durante praticamente dez anos, época em que o mercado inclusive perdeu a liquidez.

Esse episódio foi sorte pura, com desfecho feliz, ao contrário da galopada da eguinha Energia.

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Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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