Mercadores da Noite #36 - O Avião é Nosso

27 de dezembro de 2017
Temer contra a Boeing

Mercadores da Noite

Caro leitor,      

Há cerca de dez dias a Boeing Aircraft e a Embraer emitiram um comunicado conjunto anunciando um início de negociação para fusão das duas empresas. É até esquisito se usar a palavra “fusão” em se tratando de uma empresa (Boeing) cujo valor de mercado é de 176 bilhões de dólares e outra (Embraer) de 4,5 bilhões.
   
Por acaso a expressão certa seria “o peixe grande querendo abocanhar o pequeno?”
   
Deve ter sido por isso que o presidente Michel Temer − sempre afobado na tentativa de agradar, coisa que nunca consegue − deu uma entrevista na qual disse que a fusão “não está em cogitação”.
    
Bem, impedir que as duas empresas se fundam (cuidado, copidesque) até que ele pode. Embora detenha uma participação minoritária na Embraer, o governo brasileiro tem uma golden share. Esta lhe dá o direito de veto nas decisões corporativas. Só que exercê-lo apenas por exercê-lo é burrice.
   
No fechadíssimo clube da indústria aeronáutica mundial temos duas concorrências. No topo, a Boeing e a francesa Airbus. Na parte de baixo, a canadense Bombardier e a Embraer.
   
Em cima é briga de pesos pesados. Embaixo, pesos pena. Mas são lutas boas nos dois níveis, nem sempre travadas com galanteria.
  
O último produto da Boeing é o 787, também conhecido como dreamliner. Moldado em fibra de carbono, usa turbinas General Electric ou Rolls-Royce, à escolha do comprador. Tem a silhueta de um tubarão e seu sistema de pressurização é perfeito. Preço: 225 milhões de dólares a unidade.
  
A concorrente Airbus não faz por menos. O A-380, com quatro turbinas e uma cabine de passageiros de dois andares, é capaz de levar até 853 pessoas se toda configurada para classe econômica, ou 525 com três classes. Cada aparelho custa 437 milhões de dólares. O 380 se assemelha a uma baleia branca.

Já a Embraer e a Bombardier fabricam aviões para voos de média distância (aviação regional) e jatinhos executivos (general aviation). 

Acontece que a Airbus está se fundindo com a Bombardier e isso não deixa outro caminho para a Embraer que não seja o da associação com a outra gigante. Caso contrário, irá encolher. Perder espaço.
  
O anúncio do namoro da Boeing com a Embraer foi tão bem recebido pelo mercado que as ações da empresa brasileira subiram 25 por cento imediatamente após a divulgação da notícia. Por outro lado, os acionistas da Boeing reagiram com indiferença. Os papéis da gigante de Seattle caíram 0,5 por cento na bolsa de Nova York.
  
Ao invés de fazer proselitismo e proclamar um nacionalismo que não é de seu perfil, o presidente Michel Temer deveria pôr alguém para acompanhar o negócio. Alguém que entenda do riscado.

Uma ótima ideia seria exigir dos americanos da Boeing que dobrassem em, digamos, dez anos, as linhas de montagem e a produção da Embraer, assim como o número de projetistas, operários e pilotos de provas nas fábricas e nas pistas de testes, situadas respectivamente nos municípios de São José dos Campos e Gavião Peixoto, ambos no Estado de São Paulo.
   
Há algumas décadas havia diversos fabricantes de aviões de grande porte para uso das companhias aéreas. Entre eles, além da Boeing, a McDonnell Douglas, a Lockheed, a Convair, a British Aircraft, as suecas Saab e Scania e a japonesa Nippon Aircraft, além das russas Ilyushin e Tupolev que existem até hoje, mas têm mercado restrito.   

Assim como nos diversos setores da atividade econômica a tendência de fusões e aquisições é um caminho sem volta.
  
Por essas razões, acredito que o negócio da Boeing com a Embraer vai acabar saindo. Só espero que o governo brasileiro use de suas prerrogativas não para atrapalhar a fusão, mas para que ela seja benéfica para a indústria aeronáutica brasileira, que tem história. E não estou falando das peripécias de Alberto Santos Dumont na Belle Époque.
  
O primeiro avião que pilotei, em 1958, e no qual tirei meu brevê, era um Cap-4, mais conhecido como Paulistinha, fabricado pela Neiva em Botucatu, SP. O prefixo era PP-RVI, ou Romeo – Victor – India, conforme o alfabeto aeronáutico.

A fuselagem era uma combinação de tubos de aço e tela. Sim, tela, do mesmo tipo dessas que revestem os homens-sanduíche que anunciam “Compro ouro” nas ruas do Centro Velho de São Paulo.  

O motor, americano, era um Lycoming de quatro cilindros, importado dos Estados Unidos. 

Se houvesse um incêndio a bordo, e o avião já estivesse no ar, não haveria escapatória. A tela, revestida por uma cola, altamente inflamável, que a tornava dura, queimaria feito uma bola de pingue-pongue.

Em questão de um ou dois minutos a aeronave, completamente despida, deixava de ser uma aeronave, se transformava em um engradado e despencava das alturas.
  
É verdade que nós, pilotos, levávamos paraquedas. Só que, como eram muito incômodos, a gente se sentava sobre eles ao invés de vesti-los. E muito menos sabíamos como usá-los numa emergência. Foi esse tipo de aviação que vi nascer e que mais tarde se transformou na Embraer, o terceiro fabricante aeronáutico do mundo.

Nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia, há aviões da Embraer com capacidade para transportar mais de cem passageiros. O E-195, por exemplo, leva 118.

A China não só encomendou mil desses aviões brasileiros, como quer que a Embraer os fabrique lá. É isso que o Brasil tem de fazer com a Boeing, usando a golden share para, digamos, estimulá-los a aceitar o negócio.

Quem sabe em um futuro próximo teremos Boeings 737-800, desses que, como diria a saudosa Carmen Mayrink Veiga, todo mundo tem, fabricados em São José. Enquanto isso, eles continuariam fabricando os wyde-body de última geração lá em Seattle.

Isso tem de ser acertado em 2018, antes que a sabedoria popular dos eleitores brasileiros eleja um nacionalista xenófobo. Tenho certeza de que ele vai dizer que os americanos estão querendo roubar a indústria aeronáutica brasileira. E não duvido que surja um slogan besteirol do tipo “o avião é nosso”, que nem Santos Dumont aprovaria pois fabricou os seus em Paris.

Aí só faltará voltarmos à época dos aviões feitos de telas de homens-sanduíche. 

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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