Gritty Investor #8 - Quanto você quer ganhar?

30 de junho de 2017
Manhattan overnight

Gritty Investor

Oi,
     
Nessa semana eu tive uma experiência nova. Eu tomei anestesia geral. Que viagem! Infelizmente pra conseguir isso tive que quebrar a clavícula, uma escápula e quatro costelas num tombo de bicicleta. Mas agora eu sei o que fazer se o mundo acabar amanhã: eu quero ser anestesiado e ficar naquele estado, naquela calma. Havia uma crise lá fora e eu estava calmo. Eu achava que minha mente estava trabalhando intensamente, que estava pronta para desvendar grandes questões que me afligem como pessoa, que eu poderia vir aqui e revelar a vocês o caminho do sucesso financeiro sem riscos. Mas era só o efeito das drogas – já passou.
     
Em 1626, holandeses (alguns expulsos do Brasil) compraram de nativos americanos a ilha de Manhattan pagando 60 Guilders, o equivalente a 1.050 dólares. Atualmente, o metro quadrado naquele local vale aproximadamente 16.000 dólares, algo próximo a 3 trilhões de dólares pela ilha toda. Esse é um bom exemplo de um investimento imobiliário de sucesso.
      
Abrindo a tela do Tesouro Direto vejo um título público federal, com alta liquidez, com vencimento em 2050 (NTN-B), oferecendo retornos reais acima da inflação por um prazo relativamente longo.
        
O que esse título do Tesouro e a compra de Manhattan têm em comum? Nesse caso, surpreendentemente, a taxa de retorno: 5,7 por cento ao ano.
       
Manhattan se valorizou 5,74 por cento a.a. nos últimos 391 anos. Pode conferir:

Você pode ter o mesmo retorno pelos próximos 33 anos, simplesmente comprando títulos públicos no Tesouro Direto. Mas meu instinto me faz desconfiar de que coisa boa demais para ser verdade sempre tem uma armadilha. Meu desafio é entender claramente qual é essa armadilha.

O que está errado nesse raciocínio?
Existe sim uma falha e ela não é óbvia. Títulos públicos para efeitos de análise são sempre considerados ativos livres de risco. É a partir do retorno do ativo livre de risco que se calcula o retorno adicional exigido de investimentos mais arriscados. Assim, no Brasil, se não for pra fazer um investimento igual ou melhor do que o que os holandeses fizeram ao comprar a área imobiliária mais valorizada dos EUA, não vale a pena gastar energia. Se isso não faz sentido do ponto de vista teórico, por que ainda existe no mundo real?
     
Eu tenho gastado muito tempo pensando nessa questão. O que é um ativo livre de risco em um país como o Brasil? Por que um ativo livre de risco oferece um retorno tão alto? Se eu tivesse que montar uma carteira de investimentos que só poderia ser movimentada pelos meus netos, o que eu colocaria nela?
     
Obviamente não tenho uma resposta pronta pra todas essas questões. Não existe uma resposta certa ou errada. Mas, curiosamente, nosso instinto pode nos levar na direção errada quando lidamos com risco real de perda de capital. Não estou falando de oscilação de preços, mas de destruição de riqueza, de movimentos que afetam uma geração e moldam o inconsciente coletivo do mercado.
      
Basicamente minha carreira aconteceu após o Plano Real. A maioria da minha geração foi moldada e aprendeu a investir sob a métrica do CDI. E, desde 1994, o CDI é o rei. Nesse período, o Brasil pagou taxas de juros reais muito altas para aplicações de liquidez imediata. Inicialmente para ancorar o câmbio fixo e posteriormente para manter a política de metas de inflação.
     
Depois de tanto tempo nessa realidade distorcida, ninguém se questiona mais sobre o motivo desse fenômeno. Mas eu acredito que esta fase está chegando ao fim. Ela vai acabar pelo bem, com o Brasil fazendo os ajustes que permitam uma queda de juros sem inflação, ou pelo mal, que é um cenário sobre o qual prefiro não discorrer aqui.
      
Mas enquanto essa questão não se define, o investidor segue se comportando pelo condicionamento aprendido nos últimos 20 anos. Uma crise se apresenta, todos correm para o CDI, o juro sobe e com menos “risco” – quem foi prudente é premiado com juros reais de 6 por cento ao ano. Manhattan overnight! Para muitos a vida tem sido difícil no Brasil. Mas para o investidor, não – ele sempre tem o conforto do juro real positivo com liquidez diária para se consolar.
     
A questão fundamental continua sendo o risco de solvência do Estado. Qual a lógica de vender ativos reais (bolsa/imóveis) para dar dinheiro a um credor em dificuldades? E, pior ainda, por que usar o argumento de que o crédito está piorando (piora fiscal) para justificar trocar ativo real por crédito (vender bolsa e colocar no CDI)?
      
A armadilha é que países como o Brasil raramente de fato pagam suas dívidas a seus credores. Normalmente eles acabam com elas por meio de default (calote) ou inflação que vai corroendo o valor da moeda diminuindo a dívida pública.

Não existe lógica. Existe condicionamento passado. Isso funcionou desde 1994 e provavelmente vai continuar funcionando em um futuro próximo. Mas essa é uma distorção que vai acabar pelo bem ou pelo mal. A grande questão é saber como montar uma carteira que sobreviva e/ou prospere em qualquer que seja o desfecho. Eu não sei qual o desfecho, torço pelo melhor, mas olhando o Jornal Nacional temo pelo pior. E ter meu patrimônio 100 por cento em títulos públicos para deixar para meus netos não parece ser a definição de uma carteira sem risco.
       
Na tela da TV em silêncio, vejo o Fachin falando numa transmissão ao vivo de uma sessão do STF. Dá vontade de tomar outra dose de anestesia e só acordar quando essa operação acabar.

Conheça o responsável por esta edição:

Pedro Cerize

Gestor de fundos de investimentos e autor da série A Carta

Sócio-fundador da Inv e da Skopos Investimentos, Pedro Cerize é considerado um dos melhores gestores de renda variável do Brasil. Em sua série “A Carta”, analisa a economia brasileira e sugere alocações de investimentos. Também é autor da newsletter "Gritty Investor" e está à frente da série "1+100 Reloaded", além de participar da "Top Pix".

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