Gritty Investor #6 - O conto do aliche

16 de junho de 2017
Minha opinião sobre bitcoin

Gritty Investor

Oi,

Muitas pessoas sabem que eu trabalho no “mercado financeiro” e acham que eu sei o que vai acontecer com qualquer coisa que tenha a ver com dinheiro. No início eram aqueles que iam viajar no final do ano e me perguntavam em janeiro se era pra comprar dólares. Quando jovem eu respondia: Não tenho ideia (e silenciosamente pensava: se eu soubesse, não te diria). Vi que isso era encarado como uma sabotagem de informação. Com o tempo mudei para: “Acho que vale ir comprando aos poucos” e as pessoas saíam satisfeitas. Essa virou minha resposta padrão.
          
Agora, querem saber a minha opinião sobre bitcoin. Resposta: “Não tenho a menor ideia”. Mas isso não bate com a minha posição de Especialista em Generalidades Sênior. Para tudo, meu conhecimento, vasto como um oceano e raso como uma colher de chá, é absolutamente necessário. Para parecer mais inteligente ainda, não dou uma resposta direta, só conto esta história.

Era uma vez dois portugueses, Jacob e Isaac. Comerciantes astutos, eles eram conhecidos por fazer qualquer negócio desde que vissem uma chance de ganhar “dinheirinha”. Uma vez, um devedor enrolado pagou Jacob com um carregamento de latas de aliche. Pelas contas, cada latinha tinha saído por 1 real. Sem saber o que fazer com aquilo, ligou para Isaac e contou o que tinha acontecido.

Disse que não queria ganhar nada e ofereceu o lote todo por 2 reais a latinha. Isaac, sabendo que Jacob era muito esperto, reclamou um pouco, mas para ajudar (e ganhar algum) ficou com o aliche. Jacob ficou feliz a princípio. Mas desconfiado foi pesquisar mais sobre o tal do aliche. Viu que era usado em pizzarias e que, se vendesse no varejo, daria pra ganhar um bom dinheiro. Óbvio, Isaac era muito esperto, por isso comprou logo. Ligou para o amigo dizendo que não queria abusar da amizade e que para compensar todo o trabalho, recompraria o lote por 4 reais a lata.

Isaac disse que não precisava e que ele queria ficar com o carregamento. Porém, por 5 reais, poderia vender de volta. Jacob reclamou um pouco, mas sabendo do lucro que poderia ter acabou fechando. Isaac voltou feliz pra casa e contou pra Sarah, sua esposa, como tinha ganhado negociando aliche. No dia seguinte, Sarah encontrou Ruth, esposa de Jacob na feira. Ruth estava animada com um negócio novo do marido: aliche. Já havia alguns compradores dispostos a pagar bem mais pelo lote. Sarah voltou correndo pra casa: “Isaac, compre de volta o aliche que esse negócio vai dar muito dinheiro”. Rapidamente ele ligou para o amigo e, com muito custo, conseguiu comprar de volta o lote por 10 reais a lata.  

Depois de um mês, Jacob e Isaac estavam ricos. Jacob, que começou com uma dívida de baixa qualidade, já tinha ganhado em 30 dias o lucro de um ano da loja. Isaac tinha em suas mãos um estoque enorme de aliche, que valia uma fortuna. Quatro seguranças armados guardavam o almoxarifado 24 horas por dia. Eis que a catástrofe chega. Isaac desesperado liga para Jacob e dá as más notícias:
         
- Jacob, você me enganou. Ontem eu e Sarah, pra comemorar, abrimos uma lata de aliche (que a essa altura já valia e 1.115 reais) e descobrimos que tinha só uma pedra dentro. Todo carregamento só tinha pedra.
      
Indignado, Jacob responde: 

- Isaac, seu idiota, aliche não é pra comer. É só pra negociar!
       
É assim que eu vejo bitcoin: uma lata de aliche. Não é pra comer, é pra negociar.     

Bitcoin é uma moeda?

Marketing é tudo. O nome bitcoin já remete a “moeda”. Assim como o ouro, ele precisa ser “minerado”. Além disso, com o tempo ele vai ficando escasso e a mineração vai ficando mais cara. Se o custo marginal de mineração sobe, o preço deveria subir, certo? Não sei a resposta, mas vamos ao conceito principal de moeda.
      
Consultando o Google, temos: moeda é o meio pelo qual são efetuadas as transações monetárias. É todo ativo que constitua forma imediata de solver débitos, com aceitabilidade geral e disponibilidade imediata, e que confere ao seu titular um direito de saque sobre o produto social.
          
Uma moeda é emitida por um estado soberano e representa um meio legal de liquidar contratos e obrigações naquele país. O principal deles são os impostos. Todo americano que paga impostos precisa de dólares. Existe uma demanda natural cativa. Enquanto um americano tiver algo a oferecer a outro americano ou ao resto do mundo (produto social) em troca de dólares, o dólar vai ter valor. Em termos agregados, enquanto a América tiver produtos, serviços ou ativos que interessem ao resto do mundo, o dólar terá valor em relação a outras moedas.

No passado, o tesouro americano garantia a troca de ouro por dólar a uma taxa fixa. Com isso, o ouro era uma quase moeda, com a vantagem de que essa relação de troca existia em vários países e, portanto, era uma moeda global.
       
O bitcoin foi criado com esse conceito, com a vantagem de que é muito mais fácil ser transferido e estocado por ser digital. Mas, fundamentalmente, o ouro só vale o que as pessoas pagam por ele. Assim como o bitcoin. Ele não serve para ser consumido (apenas como joia), só para ser negociado.
            
Com isso, encerro meu caso: bitcoin não tem valor intrínseco. Ele vale o que o “mercado” acha que vale. Mas, ao contrário do ouro, ele não é fundamentalmente escasso, já que outras cryptocurrencies podem e já estão sendo criadas. Se uma chuva de meteoros feitos de ouro caísse sobre a terra, tornando esse metal abundante, seríamos todos ricos com um tesouro caído do céu? Não, pelo contrário: toda riqueza armazenada em ouro deixaria de existir.

Conheça o responsável por esta edição:

Pedro Cerize

Gestor de fundos de investimentos e autor da série A Carta

Sócio-fundador da Inv e da Skopos Investimentos, Pedro Cerize é considerado um dos melhores gestores de renda variável do Brasil. Em sua série “A Carta”, analisa a economia brasileira e sugere alocações de investimentos. Também é autor da newsletter "Gritty Investor" e está à frente da série "1+100 Reloaded", além de participar da "Top Pix".

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