Mercadores da Noite #306: Como eles receberam e transmitiram o governo

10 de dezembro de 2022
A praxe nesses casos é que o substituto culpe o antecessor pelo descalabro e declare que será obrigado a apertar os cintos para restabelecer a normalidade.

Olá, leitor(a),
 

Faltando apenas 22 dias para a posse de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência da República, o governo que sai deixa as contas públicas em situação lamentável.

A praxe nesses casos é que o substituto culpe o antecessor pelo descalabro e declare que será obrigado a apertar os cintos para restabelecer a normalidade.

Ao receber, de Michel Temer, a faixa presidencial, Jair Bolsonaro herdou junto contas saneadas por dois homens de grande espírito público e capacidade técnica: Henrique Meirelles, que ocupava a Pasta da Fazenda, e Ilan Goldfajn, que presidia o Banco Central.

Prova disso é que Meirelles foi dirigir as finanças do Estado de São Paulo e Goldfajn é hoje presidente do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento –, com sede em Washington.

Temer não recebeu faixa de ninguém, já que assumiu por ser vice-presidente da impichada Dilma Rousseff.

Sem aspirações de reeleição (mesmo porque não tinha a menor chance) Michel Temer cuidou de melhorar as finanças do país, ao qual legou a Lei de Responsabilidade Fiscal, que hoje parece ser letra morta, tantas são as medidas que Bolsonaro adotou para contorná-la, no que está sendo imitado por Lula, mesmo antes de tomar posse.

Quando Luiz Inácio passou o bastão para Dilma, as contas públicas já começavam a se deteriorar. E ela nada fez para melhorar a situação. Muito antes pelo contrário, começou a artificializar a economia, tabelando e até reduzindo tarifas públicas como se o amanhã não existisse.

Nos seus últimos anos de governo, Fernando Henrique Cardoso enfrentou diversas intempéries, como uma crise hídrica (que as pessoas chamam erradamente de apagão), além de um ataque especulativo ao real e consequente perda de reservas cambiais.

Cavalheira e patrioticamente, FHC e seu ministro da Fazenda, Pedro Malan, escancararam as contas para Lula e Antonio Palocci que, por sinal, puseram em prática aquilo que eu menciono no segundo parágrafo deste artigo: aperto de cintos.

Com exceção do Fome Zero, programa de baixo custo e alto retorno político, Lula primeiro arrumou as contas do país, elevando substancialmente as reservas cambiais, no que foi ajudado pela alta dos preços das commodities e pelas importações chinesas de produtos brasileiros.

Fazendo isso, deu início a um ciclo de prosperidade que durou até a crise do subprime (2007/2010).

Fernando Henrique Cardoso recebeu a faixa de si mesmo. E não estou me referindo à sua reeleição. É que fora ministro da Fazenda de seu antecessor, Itamar Franco, ocasião em que foi elaborado o Plano Real que estabilizou a moeda brasileira.

Tal como Temer, Itamar Franco foi vice de um impichado, Fernando Collor de Mello. Só que este, antes de ser defenestrado do Planalto, nomeou um ministério de notáveis, entre os quais o diplomata Marcílio Marques Moreira, na Economia, o senador Jarbas Passarinho, na Justiça, e Ozires Silva, na Infraestrutura, entre outros.

Junto com a faixa presidencial, Collor recebeu de seu antecessor, José Sarney, uma inflação (mensal, bem entendido) de 82,39% (inacreditáveis 135.422,77% ao ano).

Muito se fala do confisco de Fernando Collor, quase sempre em tom crítico. Acontece que todos os países que chegaram a esse nível inflacionário não tiveram outra alternativa a não ser a de fazer um choque heterodoxo ou simplesmente deixar o dinheiro perder o valor.

Foi o que aconteceu na Alemanha, em 1923, na Áustria, em 1924, na Hungria (1946) e mais recentemente no Zimbábue, que registrou uma alta mensal de preços de 837,53% em julho de 2020.

José Sarney herdou a presidência de um moribundo, Tancredo Neves, que não tomou posse e morreu 37 dias após a data em que seria entronizado no cargo.

Tancredo chegou a preparar seu discurso para a primeira reunião ministerial, no qual se sobressaía a palavra “austeridade”, austeridade essa que Sarney trocou por diversos planos heterodoxos, sendo que nenhum deles deu certo.

Durante os 21 anos de regime militar (1964/1985) a troca de presidentes se assemelhava à passagem de comando em um quartel, sempre sem maiores sobressaltos.

Quando o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco assumiu, herdou do deposto (ou fugido – aqui as versões são controversas) João Goulart uma inflação anualizada de 80%.

Dispondo do poder de editar atos institucionais, e podendo legislar em matéria financeira por decreto-lei, é imperdoável que os governos militares, após um início de extrema austeridade, durante as gestões de Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos, respectivamente na Fazenda e no Planejamento, não tenham mais tarde, a partir do governo Geisel, controlado a inflação oriunda dos dois choques do petróleo e passado a faixa presidencial aos civis com uma inflação anual de 215%.

Se Lula pretende iniciar seu governo resolvendo, da noite para o dia, os problemas sociais do país, sem antes ajustar as finanças, dará com os burros n'água.

Nesse cenário, altamente provável, quem gosta de manter sempre uma posição em ações deve fugir de empresas ligadas ou dependentes do governo e procurar papéis de exportadoras, que lucrarão com uma inevitável alta do dólar.

Um ótimo fim de semana para todos.

Ivan Sant’Anna


Nota do editor: Além de assinar a Mercadores da Noite, que sai aos sábados aqui e em podcast nas plataformas Spotify e Deezer etc., Ivan Sant'Anna também escreve todas as segundas, terças e quintas-feiras a coluna Warm Up PRO e que você pode conhecer clicando aqui!

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Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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