Mercadores da Noite #260: As múltiplas faces de um mercador

22 de janeiro de 2022
Foram vários Ivans Sant’Annas ao longo desses 64 anos, operando diversos ativos.

Caro(a) leitor(a),
 

Como os leitores assíduos de minhas crônicas já sabem, ad nauseam, estou ligado ao mercado financeiro desde o longínquo ano de 1958, em plena era JK.

Só que foram vários Ivans Sant’Annas ao longo desses 64 anos, operando diversos ativos, além de alternar, ou acumular, funções de broker, trader e especulador por conta própria, atuando tanto nos mercados de renda fixa como variável.

Comecei na corretora H. Picchioni, em Belo Horizonte, operando câmbio para pagar minhas horas de voo no aeroclube do Carlos Prates, já que meu sonho, desde garoto, era ser piloto de linhas aéreas.

Acontece que ganhei tanto dinheiro comprando e vendendo dólares que acabei relegando a aviação a hobby e me tornei mercador para sempre.

No câmbio, comprávamos dólares dos exportadores, vendíamos para os importadores e vice-versa.

Foi nessa época que tive a ideia de operar futuro, vendendo a moeda a descoberto e comprando ainda sem saber quem seria o cliente do dia seguinte. E não é que lavei a égua. Quem chega primeiro, bebe água limpa.

Quando a SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito), órgão que antecedeu o Banco Central na gestão da política monetária e cambial, passou a fixar a cotação do dólar, me transformei em despachante. Um burocrático datilógrafo.

Mas não por muito tempo.

Logo comecei a trabalhar no mercado de renda fixa, comprando e vendendo Letras do Tesouro de Minas Gerais e notas promissórias da Companhia Siderúrgica Mannesmann.

Quando, em 1965, o governo dos Estados Unidos, temendo que o Brasil se “cubanizasse” (Fidel Castro tomara o poder em 1959), ofereceu bolsas de estudos em diversas áreas, fiz e passei em um exame para estudar mercado de capitais na New York University.

Lá, estudando em tempo integral, aprendi coisas sobre as quais jamais ouvira falar: quociente preço/lucro, conceito de stop, margens, ajustes, análise técnica e mais uma centena de matérias que iria pôr em prática quando regressasse ao Brasil.

De Nova York, vim para o Rio, minha cidade natal. Fui trabalhar na financeira Decred como operador de letras de câmbio e Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional.

Entre outras novidades, passei a fazer cálculos de juros compostos, que não eram usados no mercado brasileiro. Aqui, três por cento ao mês eram 36% ao ano e pronto!

Em 1968, fundei, associado com o grupo Decred, a Fator Corretora de Títulos S.A, empresa que existe até hoje, atualmente sob controle do BTG Pactual.

Na Fator, resolvi ser operador de pregão na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro. Curiosamente, fui obrigado a esquecer tudo que aprendera antes para não me confundir na hora de “treidar”.

Por pura coincidência, entrei lá no início de um dos maiores bull markets ocorridos no mercado brasileiro de renda variável.

No recinto de negociações (estamos falando da época do viva-voz), a gente simplesmente “enxergava” o mercado. Via quem estava comprando ou vendendo grandes lotes e o imitava. Era um jogo de cartas marcadas que me enriqueceu num par de anos.

Não sei se nasci virado para a lua ou percebi o high das ações no momento exato. O certo é que, no segundo semestre de 1971, saí da Bolsa e fui trabalhar no open market.

Como o Brasil estava erigindo uma dívida interna de respeito, no open bastava comprar papéis do governo e carregá-los no overnight. A taxa de remuneração era maior do que o custo de carregamento.

Podendo alavancar 30 vezes o capital e reservas, todo mundo enriqueceu. Como eu já era rico, quintupliquei o que já tinha.

Em novembro de 1976, durante uma viagem a Las Vegas que, aliás, narro em meu livro Rapina, um banqueiro amigo meu garantiu que o grupo Independência Decred, ao qual a Fator tinha vínculo acionário, iria sofrer intervenção do Banco Central.

Felizmente, pude desalavancar a corretora e escapei da guilhotina do BC. Mas não sem perder todo o meu dinheiro, já que fiz questão de pagar as letras de câmbio e CDBs que tínhamos vendido e ainda estavam em poder dos clientes.

Nessa época decidi esquecer o Brasil e ser broker e trader nos mercados de Chicago e Nova York. Além disso, ter como clientes apenas pessoas que gostavam de correr risco. Caras que me diziam:

Põe 200 mil dólares no café. Para dar uma porrada ou perder tudo.”

Essa gente jamais reclamava.

Foi assim que dei, como broker, bem entendido, a maior porrada de minha vida, no mercado de soja, em 1988. Transformei 80 mil dólares de cada cliente em cinco milhões em menos de três meses. Ganhei gratificações (bichos) de respeito.

No final de 1992, comecei a escrever meu primeiro livro, Os mercadores da noite. E me apaixonei perdidamente por Julius Clarence, principal personagem da ficção.

Passei a deixar o mercado em segundo plano. Viajei para Davenport (Iowa), Chicago, Nova York (fiquei um mês na biblioteca municipal da Quinta Avenida), Bruxelas, Londres, Paris, Lausanne e diversas cidades pequenas onde se passa a ação do livro.

Em abril de 1995, Ivan Sant'Anna trocou os números pelas letras.

Meus três primeiros livros, todos ficções, foram ambientados no mercado financeiro. Depois escrevi sobre tragédias aéreas e outros temas.

Se o mercado de renda variável implica risco, na literatura a situação não é diferente. Nunca se sabe se um livro novo vai fazer sucesso ou ser um fracasso.

Aos 63 anos, idade em que a maioria das pessoas já está pensando em vestir o pijama para assistir a novela das nove, recebi, e aceitei, um convite da TV Globo para ser roteirista. Durante seis anos escrevi as séries Carga Pesada e Linha Direta. Até que as duas foram tiradas da grade de programação.

Voltei para os livros. Entre um e outro, recebi, aos 76 anos de idade, um convite para ser cronista da Inversa. E cá estou até hoje.

Curiosamente, não há um dia sequer no qual não aprenda alguma coisa nova, principalmente quando leio as análises de meus colegas especialistas. Fora as ideias que a gente troca durante as reuniões diárias das nove da manhã. Essa é minha face atual, que já dura cinco anos.

O único grande desejo que tenho é morrer trabalhando, seja escrevendo uma minissérie ambientada no mercado financeiro, seja plantando frutas no vale do Jequitinhonha, usando um sistema de irrigação revolucionário que um grande amigo inventou e ninguém usou até hoje.

Um abraço e ótimo final de semana!

Ivan Sant’Anna

PS: Desculpem-me se repeti alguns casos e causos que já contei em outras crônicas. Mas, como dizia Nelson Rodrigues, "os homens não são lembrados pelo que dizem, mas sim pelo que repetem."
 

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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