Mercadores da Noite #255: Retalhos literários – Epílogo

18 de dezembro de 2021
Em 2003, escrevi O diário de Belarmino Roscão. Trata-se da saga de uma família de trambiqueiros. É o que trago nesse último episódio da série Retalhos literários.

Caros(as) leitores(as),

Em 2003, escrevi um livro ao qual dei o título de O diário de Belarmino Roscão. Trata-se da saga de uma família de trambiqueiros.

Terminado o texto, o submeti à editora Objetiva, através da qual eu já lançara diversas obras. Só que não chegamos a um acordo sobre os valores do adiantamento de direitos autorais.

Faltam bons personagens femininos”, eles alegaram.

Pois bem, desisti do lançamento. E o texto foi sepultado no HD de meu computador.

Só que, relendo o trabalho, encontrei diversas passagens que julgo interessantes publicar nesse último episódio da série Retalhos literários. Vamos a elas:

O advogado Humberto Acosta, representante em São Paulo do Handel Universalbank – um banco de investimentos sediado na cidade de Vaduz, capital do principado de Liechtenstein, na Europa Central −, chegou ao Rio de Janeiro na manhã de uma segunda-feira ensolarada no início de abril de 2002. Depois de desembarcar de um Airbus da TAM, no aeroporto Santos Dumont, ele se dirigiu à esteira de bagagens, onde aguardou impaciente a chegada de sua mala.

Acosta costumava vir sempre ao Rio, em visita a clientes do banco. Nessas ocasiões, demorava-se não mais do que algumas horas, retornando logo a São Paulo. Mas desta vez sua missão iria se prolongar por, no mínimo, uma semana. Por isso, fizera reservas no hotel Copacabana Palace.

Quando, finalmente, a esteira rolante produziu a mala, uma Louis Vuitton em tons pasteis enxadrezados, equipada de rodinhas, ele se apossou dela e encaminhou-se a passos largos para o balcão de uma cooperativa de táxis. À moça uniformizada que o atendeu, informou que desejava ir para Copacabana. Cinco minutos mais tarde, enquanto o carro seguia pelo Aterro do Flamengo, Acosta recapitulou mentalmente suas tarefas para os próximos dias.

Divorciado, sem filhos, aos 55 anos ele trabalhava no banco havia quase uma década. Suas funções, como chefe do escritório da instituição em São Paulo, consistiam principalmente em cuidar das contas de clientes brasileiros, todas pessoas endinheiradas, pois o Handel não aceitava depósitos iniciais inferiores a 500 mil dólares. Ultimamente, o movimento crescera bastante. No ano anterior, 2001, houvera uma grande fuga de capitais do Brasil, devido às incertezas provocadas pela crise política e econômica enfrentada pela Argentina, crise essa que a todo momento ameaçara atravessar a fronteira. Muito dinheiro migrara para diversos paraísos fiscais, entre eles o Liechtenstein.

Uma das maiores contas administradas por Acosta era a do empresário carioca João Pedro Roscão, recém-falecido, aos 41 anos de idade, em um desastre aéreo. Com ele morrera sua mulher, Suzana, de 36, os três filhos pequenos do casal e Camila Roscão, de 67 anos, mãe de João Pedro.

O acidente ocorrera pouco mais de dois meses antes, na sexta-feira 8 de fevereiro, com um jatinho executivo fretado pela família Roscão. A aeronave saíra do Rio, levando as mulheres e crianças. Pousara em São Paulo, onde embarcara João Pedro. De lá partira para o balneário uruguaio de Punta del Leste, onde a família possuía uma casa de praia, na qual todos iriam passar os feriados de Carnaval. Em meio a uma forte tempestade, o jato sofrera pane em uma das turbinas, solicitara um pouso de emergência em Caxias do Sul, mas jamais chegou lá. O impacto foi tão grande que o corpo de um dos pilotos levou dois dias para ser localizado, a quase 500 metros dos destroços.

No dia de sua morte, João Pedro Roscão – personagem mais conhecido nos meios financeiros do que do grande público – tinha no Handel Universalbank um saldo superior a 300 milhões de dólares, aplicados em títulos de primeira linha americanos, europeus e japoneses. Esse dinheiro constituía boa parte da fortuna da família, nele incluindo o produto da venda, no ano 2000, da Casa Bancária Carioca, instituição fundada pelo avô de João Pedro, Belarmino Roscão, em 1959, e sucessora da Casa de Câmbio Carioca, que Belarmino constituíra em 1922.

Segundo os termos da documentação arquivada em uma pasta no Liechtenstein, e assinada pelo titular da conta por ocasião de sua abertura, no caso de seu falecimento o dinheiro seria automaticamente transferido para os herdeiros da fortuna. Só que todos haviam morrido no acidente. E João Pedro não deixara testamento. Por isso, o valor integral dos investimentos da família ficaria para sempre depositado no banco. Como não havia ninguém para questionar os critérios usados na administração da conta dos Roscão, o Handel poderia, lentamente, ir transferindo boa parte do saldo das aplicações para seus próprios cofres, através de operações lesivas ao espólio. Havia mil maneiras de executá-las.

Desde que os bancos suíços, durante e logo após a Segunda Guerra Mundial, haviam se apossado, simultaneamente, do dinheiro dos judeus exterminados em campos de concentração, e dos líderes nazistas que haviam determinado esse extermínio, roubar dos mortos sempre fora uma das atividades mais lucrativas dos bancos situados em paraísos fiscais. E a diretoria do Handel não via razões, nem práticas nem morais, para agir de outra maneira...”

* * *

Naqueles dias, o assunto nas rodas de jogo era um boato, que corria a solto na cidade, dando conta de que o presidente Dutra, pressionado pela primeira-dama, dona Santinha, iria fechar os cassinos. Com medo de perder seu emprego, Junqueira era dos que mais se preocupava.

‘Você já imaginou, Belarmino’, ele perguntou, ‘quantos pais de família irão para a rua da amargura, se o Dutra fizer isso?’        

‘Bobagem, Ocimar. Isso é conversa fiada de quem não tem o que fazer. Tem o Jockey, o jogo do bicho, o carteado, as loterias, por que ele haveria de fechar logo os cassinos, que pagam seus impostos em dia, que empregam tanta gente? Mas deixe-me falar de coisas sérias, não de futricas pessimistas.’ Belarmino Roscão contou a respeito dos dólares que recebera àquele sábado.

'Isso é uma coisa que a gente resolve em dois tempos’ garantiu Junqueira. ‘O meu chefe de tesouraria, Hélcio Fontes, que você conhece, pois bem, não há quem entenda mais de falsificação de dinheiro do que ele. Pelo menos não no Brasil. Você sabe, cassino é o lugar ideal para se desovar cédulas falsas. A casa que não tiver um bom perito vai atrair pilantras dos quatro cantos do mundo’, exagerou o gerente.

Ocimar Junqueira levou Belarmino até o seu escritório e mandou chamar o Fontes, que veio em seguida. Junqueira os deixou a sós, regressando ao salão. Depois de repetir a história dos dólares que comprara, Roscão mostrou ao perito a nota de 100. Sabendo que Belarmino também era conhecedor do assunto, Fontes fez questão de examinar a cédula com cuidado especial, fazendo inclusive uso de uma lente de aumento que sacou do bolso.

Após cinco minutos de suspense, o perito assumiu uma atitude professoral e decretou:

‘Em princípio, a nota é autêntica. Aqui no cassino, eu me sentiria constrangido em recusá-la. Mas, sinceramente, o faria, sem maiores hesitações. Pois não gosto da série nem do ano de impressão, 1942. Pois esses dois dados coincidem com os dos dólares do Terceiro Reich. Estou falando da melhor falsificação de papel-moeda da história.”

* * *

Eis agora como termina o livro. Como jamais irei publicá-lo, não há inconveniente em contar o final.

Foi assim que as coisas se passaram, após o desaparecimento do clã dos Roscão”, escreveu Humberto Acosta, enxugando, ao mesmo tempo, uma lágrima e a quinta garrafinha de vodca. “Pode-se dizer que esta história está tendo um final feliz. E não afirmo isso pelo fato da maior parte do dinheiro ter ficado comigo. Refiro-me à injustiça que seria a fortuna iniciada por Belarmino terminar nas mãos dos banqueiros do Liechtenstein, ricos de algibeira e pobres de imaginação. Que nunca correram riscos para merecê-la. Onde quer que estejam”, Acosta perscrutou, pela janelinha do jato, o céu repleto de estrelas, “Belarmino, Afonso e João Pedro devem estar obsequiando este seu novo sócio com um olhar maroto de cumplicidade.”

Um forte abraço e um ótimo fim de semana.

Ivan Sant’Anna

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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