Mercadores da Noite #252: Retalhos literários – 1ª parte

27 de novembro de 2021
O que pouca gente sabe é que escrevi diversos outros livros, alguns na íntegra, nunca publicados. Hoje decidi publicar, nesta crônica, alguns desses recortes.

Caros(as) leitores(as),

Desde que comecei minha carreira de escritor, já publiquei 17 livros. Contando as diversas edições, com capas diferentes, esse número se eleva a 25. Incluindo Coração de trader, que a Inversa lançará no início de 2022, o total chegará a 26.

O que pouca gente sabe é que escrevi diversos outros, alguns na íntegra. Houve também os que parei na metade por achar que não estavam fluindo bem,

Esses livros têm trechos que considero bons, só que isolados, boa parte deles ambientada no mercado financeiro.

Hoje decidi publicar, nesta crônica, alguns desses recortes. Que se seguirão a outros nas próximas newsletters Os Mercadores da Noite. Assim o caro amigo leitor conhecerá um pouco mais de minha carpintaria literária, o que equivale a conhecer mais a minha pessoa.

Escrevi, na íntegra, um livro chamado Jogo Brasil, terminado em 2016. Acontece que ele não só desce o sarrafo no mercado financeiro como também contém algumas passagens hoje consideradas politicamente incorretas, passagens essas que iriam me causar aborrecimentos.

Ou, quem sabe, até processos na justiça.

Em meio a esses trechos, há algumas partes inocentes (ou quase inocentes) que vou transcrever abaixo. Reparem que são fragmentos salteados nos quais alguns personagens surgem de repente, sem maiores explicações e não necessariamente em ordem cronológica, já que no livro há diversos flashbacks.

* * *

Cinquenta e dois anos, Celso Millani era um ícone do mercado financeiro. Começara sua carreira como auxiliar na mesa de operações de uma distribuidora de valores. Erguera sua trajetória até o topo com grande brilho e, segundo as más línguas, atropelando impiedosamente todos que lhe surgiram pela frente. De auxiliar, subiu para operador e, logo em seguida, para chefe de mesa. Mudou de empresas várias vezes até fundar o EME com alguns sócios, nos quais, também segundo as mesmas fontes maledicentes, foi dando tombos sucessivos.

Quando menos se esperava, Millani se tornou o acionista majoritário do EME. E, sob seu controle, o banco não fez outra coisa senão crescer.

* * *

A plataforma de operações do EME, onde eram negociadas taxas de juro e de câmbio, ações e commodities, ocupava quase um andar inteiro do prédio. Os operadores se sentavam nos dois lados das mesas. Cada um tinha dois ou mais laptops abertos à sua frente. Nas telas, eram exibidas cotações dos diversos mercados, as últimas notícias, gráficos, tabelas, planilhas etc. Os profissionais compravam e vendiam os mais variados ativos através de mensagens de MSN e chats, e não mais por telefone, sistema de negociação que ficara obsoleto após quase um século de uso.

O berreiro das salas de operação de antigamente havia sido substituído por um vozerio baixo e continuado, como o da redação de um jornal. O volume e a quantidade de vozes só aumentavam (e, mesmo assim, não muito) quando algo importante acontecia, por exemplo a divulgação de um dado estatístico das economias brasileira e norte-americana.

Um homem logo chamou a atenção de Simone. Sentado num patamar um pouco acima dos demais operadores, Sérgio Vilhena podia observar todas as mesas. Podia também ver os aparelhos de TV presos ao teto – sintonizados nos canais Bloomberg, CNN, BBC, CSN News e Globo News, além de monitores de cotações, de notícias e de gráficos.

“É o nosso guru, a enciclopédia ambulante do banco”, Rochinha percebeu o interesse dela.

Economista, erudito, poliglota, 48 anos de idade, Vilhena era o principal analista do EME. Cabia a ele, através de um pequeno microfone na ponta de uma haste curva junto à sua boca e ligado aos autofalantes da sala de operações, interpretar para os colegas as notícias que chegavam do Brasil e de outras partes do mundo.

Sérgio Vilhena só não fumava mais de dois maços por dia porque no trabalho era proibido. Mas ia à forra à noite e nos fins de semana, quando alternava suas baforadas com tragos generosos de Jack Daniel's cowboy. Em seu boletim semanal sobre o mercado, exclusivo para o pessoal do EME, ele dava um jeito de citar Eça, Borges, Balzac, Pessoa, Mark Twain e Nelson Rodrigues.

Vilhena morava num quarto e sala da rua João de Barros, no Leblon, próximo ao EME, segundo ele próprio o mais espaçoso quarto e sala do Rio. Não se tratava de nenhum exagero, pois a configuração dos cômodos do apartamento era resultado da derrubada de diversas paredes de um quatro quartos.

* * *

Eu vou comprar um pouco de aveia para mim”, Vilhena disse para Simone, logo após a conversa com Millani, e começou a digitar uma mensagem em seu laptop.

“Aveia?”, Simone não entendeu o que ele iria fazer com aveia e muito menos por que a comprava pelo computador.

“É, Aveia Dezembro, na MERC”, ele se referia à Chicago Mercantil Exchange, uma das maiores bolsas de futuro do mundo, na qual eram negociados, entre diversos outros ativos, contratos de grãos. “Ganhando ou perdendo, vou vender MOC”, completou Vilhena, com um sorriso irônico.

Simone Ferreira jamais soubera que havia um mercado futuro de aveia mas sabia que uma ordem MOC (Market On Close) seria executada no fechamento do mercado, fosse qual fosse o preço no momento. Assim sendo, Vilhena estava fazendo um day trade (compra e venda no mesmo dia) para si próprio. Se a aveia subisse ao longo do pregão, ele ganhava. Se caísse, perdia. Mas não era necessário depositar margem de garantia. Apenas embolsaria o lucro ou pagaria o prejuízo.

* * *

Em 1997, logo após atropelar, na Quinta da Boa Vista, um vulto difuso, que não sabia se se tratava de mulher ou travesti, o chefe da mesa de operações do Banco Central no Rio, Rodrigo Telesca, pensou em se apresentar imediatamente a um distrito policial. Havia um ali perto, na praça da Bandeira.

Telesca poderia alegar que não parou para socorrer a pessoa atropelada por medo de ser linchado, pois ali era um lugar perigoso, ponto de prostituição. Mas talvez tivesse de explicar o que fazia na Quinta, fora de qualquer rota imaginável do Maracanã para sua casa, em Ipanema. Ou simplesmente inventar um novo local para o atropelamento, o que poderia fazê-lo cair em contradições sucessivas e complicar sua situação ainda mais.

A segunda ideia que lhe ocorreu foi a de telefonar para um advogado. Conhecia diversos, embora nenhum criminalista. E não sabia de cor seus telefones, nem os tinha na memória do celular. Lembrou-se então de que removera a bateria quando estava no motel. Pôs o dispositivo de volta no encaixe e ligou o aparelho. Havia apenas um registro de chamada, o de sua mulher, Roberta. Ele decidiu não retornar à ligação. Precisava de tempo para pensar.

* * *

Suponho que só de ler os trechos acima, o caro leitor deve ter ficado com vontade de conhecer a história toda. Por sinal, estas passagens foram tiradas dos oito primeiros capítulos de um livro de 34.

Mas não há nada como uma semana atrás da outra.

Continua no próximo sábado.

Um forte abraço e um ótimo fim de semana para todos.
 

Ivan Sant’Anna
 

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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