Mercadores da Noite #250: Bebês cinquentenários

13 de novembro de 2021
Meu cotista recém-nascido de 1971 poderia estar bem de vida graças ao Fundo.

Caro(a) leitor(a),
 

Os fatos aqui narrados aconteceram no grande bull market do mercado brasileiro de ações que se iniciou no final de 1967 e foi até o segundo semestre de 1971.

Eu fundara a Fator Corretora de Títulos S/A, ligada ao grupo Decred/Ducal/Bemoreira. De início, funcionávamos no jirau da loja da financeira Decred. Éramos eu, uma secretária e um office boy.

Logo o espaço se mostrou insuficiente para a empresa. Nos mudamos para o número 19 da mesma travessa, onde ocupamos um andar inteiro.

Agora havia vários operadores de pregão (eu, inclusive), operadores de telefone (que passavam ordens para a Bolsa), brokers, que se comunicavam com os clientes, back office, contabilidade etc., etc.

Mesmo assim não deu.

Sempre na travessa do Ouvidor, nos mudamos para o nº 23, ocupando todo o prédio (uns três ou quatro andares, já não me recordo de alguns detalhes).

Havia uma sala só para as meninas que passavam as ordens para a Bolsa, um salão para os assessores (que foi como passamos a chamar os brokers), mesa de renda fixa, setores administrativos etc.

Como a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro ia se tornando uma coqueluche nacional, tivemos que acompanhar o ritmo. Criamos o Fundo Apollo de Investimentos, administrado por um sócio egípcio-israelense que eu chamara para a empresa.

Deixamos a travessa e fomos para a avenida Rio Branco, onde alugamos, e reformamos luxuosamente, dois andares no edifício Martinelli, ao lado do prédio do Jornal do Brasil.

No andar de baixo (10º, se não me engano), funcionava a corretora. No de cima, o fundo, com toda sua estrutura de vendas, além de uma lanchonete onde tudo era de graça para os corretores, que percorriam o Rio de Janeiro batendo de porta em porta.

Já tínhamos uns 200 funcionários.

Foi nessa ocasião (a Bolsa só subindo) que decidimos criar uma modalidade de investimento que consistia em planos de aplicações contratadas, por 60 meses, através de carnês.

Os nossos clientes-alvo eram bebês recém-nascidos. A coisa funcionava do seguinte modo: tínhamos agentes em maternidades e cartórios de registro civil que coletavam os nomes dos bebês que nasciam.

Assinamos contrato com uma multinacional fabricante de artigos de higiene infantil. Ela nos fornecia, de graça, a título promocional, talcos, xampus, cotonetes, escovinhas de cabelo, tudo isso embalado em graciosas caixas coloridas com os logotipos da empresa e do Apollo (um foguetinho), homenagem à primeira nave a chegar à Lua, em 1969.

Agora, imaginem só a cena: estando o bebê com uns 30 dias, chega na casa onde ele mora uma corretora ou corretor da Fator trazendo um lindo presente para a Soninha.

Junto com o estojo, um carnê e um folheto explicativo de como se poderia, através do mercado de ações, garantir o futuro daquela criança. Bastava pagar as 60 parcelas e, com certeza, renová-las, já que a Bolsa de Valores iria subir para sempre – era o que se pensava na ocasião.

Os jornais da época publicavam o ranking dos fundos, não só suas rentabilidades como também os tamanhos de suas carteiras. No primeiro quesito, não fazíamos feio. No segundo, éramos disparados o maior. Graças a um estratagema de marketing de meu sócio egípcio:

Ao invés de passar a carteira do fundo, enviávamos às redações o total dos carnês programados, mesmo aqueles que ainda estavam na primeira ou segunda parcela.

Veio então a virada. Num determinado dia do final de 1971 a bolsa virou e tomou rumo sul. Com ela, o valor da cota do Apollo. Não houve jeito. Primeiro os clientes pararam de pagar os carnês. Depois foram à Fator resgatar o pouco que sobrara da queda.

Um corretor plantonista ainda argumentava:

Mas, meu amigo, é na baixa que se ganha dinheiro na Bolsa. Desista desse resgate, continue pagando suas prestações. Aos 18 anos seu filho terá uma pequena fortuna.”

“Meu amigo é o cacete”, respondia o cliente. Minha mulher e eu economizamos todo mês, já pusemos oitocentos cruzeiros em nome da Marilinha e agora a cota não vale nem duzentos. Passa isso logo para cá, antes que eu me aborreça.”

Foi assim que o Fundo Apollo foi morrendo aos poucos, até que acabou de vez. Muita gente nem foi pegar os trocados que sobraram.

Pois bem, os bebês de 1971 têm hoje 50 anos de idade. Não conheço nenhum deles. Ou até pode ser que conheça sem saber.

De uma coisa, tenho certeza. Ou, melhor, quase certeza. Se o Fundo Apollo tivesse durado até hoje, tendo atravessado todos os bull e bear markets da Bolsa nesses últimos cinquenta anos, transposto a hiperinflação, com suas tablitas e confiscos, meu cotista recém-nascido de 1971 poderia estar bem de vida graças a ele.

Afinal de contas, wishful thinking é de graça.

Tenha um ótimo fim de semana!

Ivan Sant'Anna

 

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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