Mercadores da Noite #247 Minhas encruzilhadas – 2ª parte

23 de outubro de 2021
Ao final da primeira parte desta crônica, Ivan comenta sobre o dia em que o Banco Independência sofreu intervenção do Banco Central do Brasil. Foi quando ele tomou uma das decisões mais difíceis de sua vida.

Caro(a) leitor(a),

Terminei a primeira parte desta crônica falando sobre o dia em que o Banco Independência, ao qual a Fator Corretora era ligada, sofreu intervenção do Banco Central do Brasil.

Eu vendera CDBs do banco para diversos clientes, mas o Banco Central nos desobrigou a reembolsá-los, já que não eram papéis de nossa emissão. Tínhamos agido apenas como intermediários.

Acontece que eu tinha um sério problema de consciência. Meus clientes haviam adquirido papéis Ivan Sant’Anna e não Independência. Eles confiavam em mim.

Naquela noite, ao chegar em casa, fiz algumas contas e concluí que meu dinheiro pessoal dava para reembolsar todo mundo. Só que ficaria sem nada, com exceção de nossa casa, por sinal financiada pelo Banco Nacional da Habitação – BNH.

Minha mulher concordou que era melhor pagar todo mundo e ir à luta. Procurar um emprego, como as pessoas normais fazem nessas horas. Aliás, ela já tinha o dela, como professora universitária.

Pois bem. Paguei. Como ainda era dono da carta patente da corretora Fator, e de uma distribuidora do mesmo nome, usei de um estratagema para vendê-las por um bom preço.

Pedi a um amigo banqueiro que me fizesse uma proposta, por escrito, de compra das duas cartas patentes. Não me lembro mais do preço, mas era algo como 400 mil dólares, em valores de hoje.

Cada pretendente que chegava com uma oferta menor, eu exibia a carta do banqueiro.

Já tenho essa proposta aqui”, eu dizia, na maior cara de pau.

Assim, acabei vendendo corretora e distribuidora por um valor maior, valor esse que me permitiria viver uns dois ou três anos sem maiores preocupações.

Acontece que consegui logo um emprego de broker. Logo no início, sofri uma grande frustração. Nenhum dos investidores aos quais eu havia reembolsado das perdas com os CDBs Independência voltou a ser meu cliente. Chegavam a mudar de calçada quando me viam.

Mais tarde, cheguei à conclusão de que eles tinham razão. Se fora preciso que eu as pagasse com o próprio bolso, numa outra oportunidade eu poderia não ter o dinheiro.

Nessa época, descobri uma ação, Cia. Real de Investimentos, mais conhecida no mercado como CRI, que pagava dividendos excepcionais. Como não sou de meio termo, pus todo o dinheiro da venda das cartas patentes nesses papéis.

Resultado: recuperei pelo menos metade das minhas perdas com os CDBs Independência dos clientes. Comemorei a tacada com minha mulher e um casal de amigos numa temporada de esportes de inverno em Cortina d’Ampezzo, na Itália, emendando a viagem para Genebra, Londres, Nova York e Miami.

Fui levando a vida. Só que em 1982 meu filho do meio, então com 12 anos, teve um tumor no cérebro (benigno, mas enorme e de difícil acesso) e ficou um ano podendo morrer a qualquer momento.

Isso aconteceu justamente num momento em que eu estava sem plano de saúde, pois tinha resolvido mudar de emprego e já saíra da distribuidora onde trabalhava.

Uma cirurgia no Rio de Janeiro salvou temporariamente a vida do meu filho, mas não resolveu o problema. Isso só veio a acontecer em março de 1983, quando viajamos para Toronto, no Canadá, onde, acreditem ou não, tive o seguinte diálogo com o neurocirurgião Harold J. Hoffman (1928-2018).

Trata-se de um cisto aracnoide suprasselar. É uma doença raríssima, mas já operei 13 casos, todos com sucesso”, ele explicou.

Quer dizer que as chances de cura são grandes?”, perguntei.

Cem por cento. Operamos daqui a três dias e ele ficará totalmente curado.” Como ficou, diga-se de passagem.

O senhor tem como me adiantar quanto custará isso, contando o hospital e seus serviços?”

”Nunca deixei de operar ninguém por causa de dinheiro”, foi a resposta. ”Quanto ao hospital, o senhor receberá a conta no Brasil um mês após seu filho ter alta”, o doutor Hoffman concluiu.

O custo total da cirurgia e da estadia no The Hospital for Sick Children, da universidade de Toronto, foi de 11 mil dólares canadenses, um vigésimo do que eu havia gastado no Brasil com médicos e hospitais.

Quando regressei ao Rio, me encontrei na seguinte situação:

  • Sem dinheiro. O das CRI fora totalmente gastado no tratamento médico no Brasil.

  • Sem emprego. Teria de procurar um.

  • Sem qualificação profissional. Durante o tempo que dediquei exclusivamente ao meu filho, o mercado havia mudado totalmente

Foi nessa ocasião que decidi operar no mercado internacional. Durante meses a fio, estudei os diversos ativos negociados em Nova York e Chicago. Estudei em minha casa, bem entendido. Cheguei a “inventar” fórmulas matemáticas que já existiam sem que eu soubesse.

Comecei operando ouro futuro na Comex para uma fundidora brasileira. Depois passei a negociar com outros ativos.

Decidi trabalhar como trader e broker. Nessa segunda função, aceitar apenas clientes altamente especulativos, gente disposta a perder sem reclamar.

Alguns deram grandes tacadas, outros perderam fortunas. Nunca nenhum deles reclamou.

Assim fui levando minha vida, fazendo ponte aérea Rio, Nova York, Chicago, até dezembro de 1992, especulando forte para mim e para os meus clientes.

Acontece que sou uma pessoa inquieta. Ateu convicto, e certo de que após a morte acaba tudo, sempre quis (e consegui) viver diversas vidas numa só.

Certa tarde de domingo, dias antes do réveillon 1992/1993, sentado na varanda de meu apartamento na Barra da Tijuca, onde vivo até hoje, comecei a rabiscar num caderno escolar de minha filha caçula:

Clarence apertou o botão do subsolo e seu elevador privativo começou a descer, na velocidade vertiginosa de sempre, os 240 metros que o separavam da garagem, 80 andares abaixo.

Em algumas horas, o mercado financeiro, as bolsas de valores, os mercados futuros e toda a comunidade de negócios começariam a implodir. Nova York, o resto da América e, mais tarde, o Extremo Oriente sofreriam as consequências das ações que Julius Clarence tramara há alguns anos, executara lenta e cuidadosamente nos últimos meses, semanas e dias e intensificara nas últimas horas.

As bolsas e mercados da Europa seriam muito tumultuados no dia seguinte. Quanto a Nova York, bem, Nova York começaria amanhã, após a leitura dos jornais e apresentação dos noticiários matutinos da TV, a viver uma de suas horas mais amargas. A pior desde o grande crash em 1929.”

Esses três parágrafos mudariam mais uma vez minha vida, que tomaria um rumo totalmente desconhecido para mim até então.

Mas isso é assunto para o próximo sábado!

Um abraço e bom final de semana!                 


Ivan Sant’Anna

 

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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