Mercadores da Noite #246 Minhas encruzilhadas – 1ª parte

16 de outubro de 2021
Àquela noite, conversando com minha mulher, tomei uma das decisões mais difíceis de minha vida.

Caro(a) leitor(a),

Se hoje estou escrevendo esta crônica para a coluna “Os mercadores da noite”, isso se deve às diversas encruzilhadas com as quais me deparei na vida. Em todas elas, tive de optar por uma, duas ou mais opções, não raro totalmente díspares.

1958 – Em pleno governo JK, eu, com 18 anos, cursava o clássico (último ano de uma das alternativas do ensino médio de antigamente) no colégio Marconi, em Belo Horizonte, cidade para onde me mudara (do Rio de Janeiro) com meus pais e irmãos.

Não tinha o menor interesse pelos estudos. Meu negócio era aviação. Desde menino, queria ser piloto comercial.  O velho, que foi para BH ser diretor da Usiminas, se recusou a pagar meu brevê no aeroclube do Carlos Prates.

Se você quiser ser piloto, então entre para a Academia da Força Aérea ou vá estudar na escola da Varig, em Porto Alegre. Nesses teco-tecos daqui, só se for por sua conta.”

Resolvi então arranjar um emprego para poder pagar as lições de voo no aeroclube. Fui parar na H. H. Picchioni, uma corretora tradicional de Belo Horizonte.

Me puseram na mesa de câmbio.  A gente comprava dólares dos exportadores e vendia para os importadores. Nessa ocasião, passei a fazer operações descasadas. Ou seja, comprava e vendia a descoberto.

Continuava a ter minhas aulas no aeroclube, agora de manhã bem cedinho e nos fins de semana. Não demorei a solar (voar sem instrutor).

Como recebia comissões no câmbio, logo passei a ganhar, ali, com 18 anos, mais do que um comandante de quadrimotor Constellation, que era o state-of-the-art das aeronaves transcontinentais.

Aos poucos, fui adiando minha carreira de piloto profissional e melhorando meu status (assim como meus ganhos) como operador de mercado.

Não sem uma pontinha de remorso (por ter traído meus sonhos), tornei-me operador de mercado assumido. Assumido e rico. --Comprei um monomotor Cessna 180, dois carros de corrida (Renault 1093 e Berlineta Interlagos) e passei a disputar algumas provas no Rio de Janeiro (circuitos do Fundão e da Barra).

Em 1960, temendo que a América Latina seguisse os passos de Fidel Castro, que tomara o poder em Cuba, socializando o país, o governo americano criou o programa AID (Aid for International Development) que aqui no Brasil levou o nome de Aliança para o Progresso.

Bolsas de estudo foram distribuídas em todas as áreas, inclusive um curso que me interessou muito: The Capital Market Training Program.

Embora a bolsa fosse excepcional, mil dólares mensais (equivalentes hoje a US$ 8.500,00), era menos do que eu ganhava na H. H. Picchioni.

Havia também as provas de inglês e economia. Como eu fizera parte de meu curso primário em Londres e trabalhava no mercado financeiro (além do meu pai ser graduado na London School of Economics; e vivia me ensinando coisas que aprendera), passei fácil pela prova de classificação.

Encruzilhada pessoal: eu tinha 25 anos e namorava uma garota de 16.

Ou a gente termina o namoro ou se casa e nos mudamos para Nova York”, disse para ela. Precisei de muito poder de persuasão para convencer os pais da minha namorada. Casamos e fomos para Nova York, onde fiz um curso intensivo de um ano na NYU, curso esse cujos ensinamentos e teorias me facilitam a vida até hoje.

Espero que o caro amigo leitor não me julgue convencido, mas BH ficou pequena para mim. Na volta de Nova York, vim morar no Rio.

De início, comecei a trabalhar na financeira Decred, como operador de letras de câmbio.

No Brasil ainda não se aplicavam juros compostos. Muito menos se alavancavam posições. Como aprendera esses conceitos básicos em Nova York, e os implantei aqui, fui chamado de gênio.
 


Dois anos depois de chegar dos EUA, fundei a corretora Fator, de sociedade com a Decred. Primeiro como operador de pregão, depois na mesa de open market, fiquei na Fator até 11 de maio de 1977.

Seis meses antes, numa viagem de pessoal do mercado a Las Vegas, fiquei sabendo, através de um banqueiro amigo, que o grupo Decred, agora chamado Independência Decred, estava com passivo a descoberto e iria sofrer intervenção do Banco Central.

Eu poderia facilmente vender minha participação na Fator e ir para outro lugar ou mesmo fundar uma nova empresa.

Foi uma encruzilhada difícil.

Preferi ficar na Fator, mantendo-a ligada ao Banco Independência Decred, custasse o que custasse. Achei que seria deslealdade de minha parte pular fora naquele momento. Mas fui desalavancando a corretora, até que seu passivo ficou menor do que o valor em caixa.

Na terça-feira 10 de maio de 1977, fui almoçar com dois amigos. Um deles era o mesmo que me avisara sobre os riscos de ficar ligado ao Banco Independência. O outro é alguém que todo o Brasil conhece.

Pois bem, eles me avisaram que o grupo Independência, inclusive a Fator, sofreria intervenção às 17 horas do dia seguinte.

Imediatamente peguei um avião para Brasília e fui conversar com o diretor de mercado de capitais do Banco Central. Mostrei o balanço da Fator, totalmente adimplente. Entre outras coisas, ele me garantiu que, de acordo com a legislação, eu não era obrigado a pagar os CDBs Independência que havia vendido, mesmo tendo caixa para isso.

No dia seguinte, a tropa de choque do BC chegou exatamente na hora marcada. Como o banco Independência e a Fator ficavam no mesmo andar de um prédio na avenida Rio Branco, eles lacraram tudo.

Àquela noite, conversando com minha mulher, tomei uma das decisões mais difíceis de minha vida.

Mas o relato do que aconteceu fica para o próximo sábado.

Um ótimo fim de semana para todos.


Ivan Sant’Anna

 

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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