Mercadores da Noite #26 - O retorno do samurai

25 de outubro de 2017
Vamos retroagir sete décadas para tentar entender o que pode estar vindo pela frente

Mercadores da Noite

Caro leitor,
  
Nas eleições legislativas japonesas do último fim de semana, o primeiro-ministro Shinzo Abe, do Partido Liberal Democrata, obteve uma vitória esmagadora. Sua coalizão política passou a ter mais de dois terços dos assentos no Parlamento.

Vamos retroagir sete décadas para tentar entender o que pode estar vindo pela frente:

Há 72 anos, mais precisamente em 2 de setembro de 1945, um domingo, representantes do imperador Hiroito, trajando fraque e cartola, subiram a bordo do encouraçado Missouri, da Marinha americana, ancorado na baía de Tóquio, e assinaram a rendição, pondo fim à Segunda Guerra Mundial seis anos e um dia após seu início.

Segundo o que fora combinado entre representantes dos dois países, a rendição não seria incondicional, tal como acontecera no teatro de guerra da Europa quatro meses antes. A manutenção do imperador Hiroito no Trono do Crisântemo fora garantida pelos americanos. Mesmo assim, as autoridades japonesas que se apresentaram no navio não foram autorizadas a ler o papel que assinaram.

Embora a tradição militar japonesa não permitisse, em hipótese alguma, que um simples soldado raso se rendesse (pelo contrário, ele deveria morrer pelo imperador, nem que fosse cometendo haraquiri), as bombas atômicas eram um fato novo. Se os Estados Unidos passassem a lançar uma bomba após a outra, as ilhas do arquipélago nipônico simplesmente desapareceriam da face da terra. Esse fato, sem precedentes na história militar, foi determinante na decisão de Hiroito de se curvar aos adversários.

A primeira bomba fora detonada num teste em Los Alamos, deserto no estado do Novo México, no dia 16 de julho de 1945. A segunda, apelidada de The Little Boy, lançada de uma Fortaleza Voadora B-29, a Enola Gay, sobre a cidade de Hiroshima, na manhã de segunda-feira 6 de agosto. Três dias depois, Nagasaki recebeu o terceiro artefato, The Fat Boy.  

Após os americanos desembarcarem nos portos e aeroportos japoneses, o general Douglas MacArthur assumiu o comando do país, com poderes totais sobre o povo derrotado. Para que isso ficasse bem claro para os vencidos, quando o imperador manifestou o desejo de se encontrar com MacArthur, este determinou que a reunião acontecesse em seu quartel-general.   

Enquanto Hiroito vestiu fraque para a ocasião, o general usou seu uniforme de trabalho, ao invés de um traje militar de gala. Naquele exato momento, sob os flashes dos fotógrafos e as câmeras dos jornais cinematográficos, ficou bem claro como seria a nova hierarquia.

O general Douglas MacArthur foi um ótimo governante do Japão. Soergueu a economia do país, inclusive seu parque industrial e frota pesqueira. Com exceção de alguns chefes militares, que foram julgados, condenados e enforcados por crimes de guerra, o povo japonês foi tratado até com certa fidalguia e não como inimigo subjugado. Fora algumas exceções, não houve estupros de mulheres nem abusos dignos de nota. 

MacArthur tornou-se extremamente admirado pelo povo japonês, inclusive por ter posto fim ao regime quase feudal que sempre prevalecera no país.

Além de fazer ampla reforma agrária, o general americano impôs aos japoneses uma nova Constituição, sob cujos termos o país jamais poderia ter forças armadas de ataque, muito menos planos expansionistas, que durante anos fora a política do Império do Sol Nascente.

Se MacArthur conseguiu impor sua vontade ao imperador, não logrou o mesmo êxito quando quis repetir a dose com seu próprio presidente, Harry Truman. Ao divergir publicamente de Truman, o general foi dispensado de seu comando no Japão.   

Dezenas de milhares de japoneses se alinharam nas calçadas no caminho entre o Centro de Tóquio e o aeroporto, quando o general Douglas MacArthur deixou o país, após quase seis anos de permanência à frente das forças de ocupação e da administração civil.

A maior herança de MacArthur aos japoneses foi um legado pacifista.  

Nas décadas que se seguiram, embora sempre aliado incondicional dos Estados Unidos, o Japão se manteve longe de conflitos armados. Assim foi na guerra do Vietnã e nas duas do Golfo. O máximo que seus comandantes militares fizeram foi enviar navios-hospitais para zonas de conflito ou de catástrofes.   

Agora, Shinzo Abe e sua aliança majoritária devem começar a mudar esse comportamento. Para isso terão de alterar a Constituição e abandonar o legado de Douglas MacArthur.   

O culpado por essa provável mudança tem nome: Kim Jong-un, o ditador norte-coreano, terceiro da linhagem de uma dinastia monárquica absolutista comunista, como se essas classificações não fossem excludentes.

Os japoneses não estão achando a menor graça em ver mísseis balísticos do filhote de ditador, cruzando, de oeste para leste, o mar do Japão e o território japonês para cair no Oceano Pacífico Norte.   

Detentor de tecnologia nuclear das mais avançadas (para fins exclusivamente pacíficos), o Japão precisa de não mais do que seis meses para construir bombas atômicas e/ou de hidrogênio, assim como mísseis para ter capacidade de lançá-las contra a Coreia do Norte. Apenas 800 quilômetros de mar separam os dois países.   

Só que, se os japoneses optarem por essa guinada político-militar, jamais usarão as bombas. Tal como acontece com todas as nações militarmente nucleares do planeta, a exemplo de Índia e Paquistão, o objetivo dessas armas será apenas a dissuasão.     

Uma bomba nuclear lançada sobre território norte-coreano espalharia radioatividade sobre a Coreia do Sul, a China e o próprio Japão. Portanto a hipótese de uma guerra nuclear é descartável. Poderia, sem exagero, ser o fim da civilização.   

Por tais razões, se o Japão construir a bomba, a China não vai gostar nem um pouco. Isso criará forte tensão no Extremo Oriente.
            
Não gosto de teorias conspiratórias e este texto não é uma delas. Trata-se de um fato. Quem tem um Kim Jong-un quase ao lado tem de arreganhar os dentes. A incerteza decorrente disso irá mexer com os mercados. É bom ficar atento aos próximos passos do recém-eleito Shinzo Abe.

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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