Mercadores da Noite #210 - Eu sou escroto mesmo!

6 de fevereiro de 2021
eu peguei a época na qual a gente tinha de saber com quem estava lidando antes de fechar um negócio
  • Nota do editor: o Ivan Sant'Anna, que está em férias em fevereiro, nos deu acesso exclusivo a seu acervo inédito de crônicas sobre o mercado. Esta que você lê agora é uma delas. Aproveite-a! Ao longo do mês, publicaremos mais ‘relíquias literárias’ do mestre, escritor e trader nas próximas edições da Mercadores da Noite.

Caro(a) leitor(a),

Embora as pessoas envolvidas nas histórias que vou contar nesta crônica irão se reconhecer, usarei nomes falsos tanto para os indivíduos quanto para as empresas. Mas os fatos são verdadeiros.

Na década de 1970, antes do advento do SELIC e do CETIP, a liquidação de títulos públicos e privados era feita com a entrega dos papéis negociados.

Havia um título cuja rentabilidade era excepcional. Refiro-me às obrigações da Eletrobras, que rendiam correção monetária mais 12% de juros anuais, pagos semestralmente.

Essas obrigações eram emitidas em troca da apresentação de contas de energia pagas por consumidores pessoas físicas e jurídicas de todo o país. Por serem muito pulverizados, o valor nominal dos papéis era pequeno.

Numa negociação envolvendo, por exemplo, um milhão de reais em valores de hoje, a quantidade de cautelas era enorme. E cada um daqueles títulos tinha cupons que correspondiam aos juros. Portanto centenas de papéis e milhares de papelotes (cupons).

Devido às dificuldades logísticas de liquidação, as obrigações da Eletrobras eram negociadas com deságio.

Numa das maiores sociedades corretoras do Rio de Janeiro (vamos chamá-la de Amalgamated) havia um operador que só cuidava de Eletrobras. Que tal o batizarmos como Juvenal?

Pois bem, Juvenal vendeu um lote gigantesco de Eletrobras para um corretor gaúcho de nome ... Osvaldo.

Os títulos foram enviados por malote (muitos malotes) para Porto Alegre, enquanto Osvaldo deveria fazer uma transferência bancária para o Rio de Janeiro, tendo como favorecida a Amalgamated.

No dia seguinte, os papéis chegaram lá no Sul, mas a grana não aterrissou no Rio.

Sem querer melindrar Osvaldo, Juvenal cobrou educadamente o pagamento.

“O dinheiro não entrou na conta.”

Osvaldo se explicou:

“Houve um probleminha aqui. Mas hoje vai, com certeza. Amanhã estará aí.”

“Claro, claro, Osvaldo.” Como o preço de venda não fora muito católico, Juvenal não quis melindrar o colega. “Essas coisas acontecem”, amenizou.

“Eu sei que fui escroto, Juvenal. Mas já está tudo praticamente resolvido. Amanhã, na primeira hora, consulte seu banco.”

“Que isso, Osvaldo? Escroto? Imagina. Eu jamais iria pensar em você dessa maneira.”

Veio o novo dia. Juvenal chegou cedo ao escritório. Assim que o banco abriu, fez a consulta.

“Até agora, nada”, disse o gerente.

Com a primeira pontada de preocupação, o trader vendedor ligou para Porto Alegre.

“Eu estou sendo escroto”, depois de deixar Juvenal pendurado na linha por quase 15 minutos, Osvaldo se justificou. “Sabe como é?”, prosseguiu.

“Você me vendeu esses papéis meio caros, mas eu os vendi mais caro ainda para meus clientes aqui no Sul. Eles se enrolaram um pouco, devem estar repassando as Eletrobras para outros, mas os cheques já chegaram. É que alguns vêm lá da fronteira. Mas amanhã, prometo, tá tudo resolvido. A grana vai estar toda na conta de vocês. Desculpe a escrotidão.”

“Imagina, Osvaldo”. Só que dessa vez o ‘imagina” teve menos força dramática. “Imagina eu pensar que você é escroto?”

Decorreram-se mais 24 horas e, como o(a) prezado(a) leitor(a) já deve estar desconfiando, a transferência de Porto Alegre para o Rio não foi feita. Com os esfíncteres bambos, Juvenal voltou a ligar para Osvaldo.

“Eu sei que você não é escroto, amigo. Mas a liquidação era D + 1 e já estamos em D + 3.”

Desta vez, Osvaldo não se fez de rogado.

“Escute, Juvenal, você não está entendendo. Eu sou escroto mesmo. O dinheiro não vai chegar aí nunca.”

“Juvenal ainda tentou argumentar, implorar humildemente, mas a única coisa que ouviu foi um repeteco.”

“Eu sou escroto mesmo”, disse o gaúcho antes de desligar o telefone.

Como o negócio tinha sido todo feito de boca, e as obrigações da Eletrobras eram ao portador, a Amalgamated morreu no prejuízo.

Tal como é de praxe no mercado, a história se espalhou. A partir daquele maldito trade, volta e meia Juvenal tinha de ouvir de um gozador, de dentro da própria Amalgamated ou dos concorrentes:

“Quis enrabar o gaúcho, tchê? Só que o cara era, como é que ele mesmo dizia?, escroto.”

O negócio não abalou os alicerces da Amalgamated, mas estigmatizou Juvenal.

***

O banco era novo, mas já entrou com marra no mercado. Seu presidente tinha sido ministro da área financeira do governo e era considerado um dos homens mais brilhantes dos meios econômicos brasileiros.

Governo é governo, setor privado é setor privado. A mesa de operações montada pela nova instituição (vamos chamá-la de B P J) não tinha a mesma competência das outras. E acabou se metendo numa trapalhada.

Naquela ocasião (ainda estamos nos anos 1970), era comum vender a termo títulos federais, ORTNs e LTNs, que ainda não haviam sido emitidos.

Pois bem, na véspera de um leilão de ORs, os operadores do B P J venderam um lote grande para liquidação em D + 2. O comprador, quem diria, foi a mesma Amalgamated.

Como os caras mais espertos do mercado dão nó em pingo d'água, uma corretora de valores (que tal Smart?) comprou, direta e indiretamente, a emissão toda pagando um preço alto.

Resultado: o B P J se viu impossibilitado de entregar os títulos à Amalgamated. Esta, por sua vez, já os tinha repassado para outros.

Alguns, mais camaradas, concordaram em cancelar a operação. Outros, não: “Eu comprei e quero meus papéis”.

Resultado: a Amalgamated teve de comprar da Smart, por preços que tangenciaram a obscenidade, para entregar a eles mesmos.

O B P J, com toda sua pompa, não ficou muito tempo no mercado. Sofreu intervenção do Banco Central e mais tarde foi liquidado extrajudicialmente.

Com as operações e liquidações eletrônicas, dificilmente essas coisas acontecem hoje em dia. Teclando em seu computador, tablet, ou mesmo se comunicando através de um smartphone, um home trader iniciante de Vilhena, na Rondônia, pode operar com o Bradesco na outra ponta, com garantia total de ambos os lados.

Só que eu peguei a época na qual a gente tinha de saber com quem estava lidando antes de fechar um negócio. Caso contrário, podia cair no colo de um escroto qualquer.

 

Um forte abraço e um ótimo fim de semana.

Ivan Sant’Anna

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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