Mercadores da Noite #163 - Geada negra

6 de março de 2020
Posso ter feito muitas loucuras em minha vida de trader, mas a loucura final, uma loucura sensata, perdão pelo paradoxo, que valeu pelos 37 anos de trabalho.

Caro leitor,
  
Na carreira de um trader, principalmente alguém que operou no mercado ao longo de 37 anos (no meu caso, entre 1958 e 1995), sempre há grandes porradas e grandes perdas. 
  
Ou grandes mentiras. Sim, mentiras, porque alguém que só perde não sobrevive na selva (desculpem-me o clichê) das bolsas e trading desks. Por outro lado, ninguém ganha sempre.
  
Para mim, uma tacada teve sabor especial. Não tanto pelo lucro em valores absolutos (ganhei US$ 180 mil no trade), mas pelo valor relativo e pela precisão cirúrgica.
    
A operação foi tão bem calibrada que nem cheguei a depositar margem de garantia na CSCE (Coffee, Sugar and Cocoa Exchange, de Nova York). Ou seja, o percentual de ganho foi infinito. Isso porque o ajuste positivo do dia em que entrei na posição comprada superou em valores a margem que teria de depositar.

Na madrugada de domingo 10 de julho de 1994, as principais regiões cafeeiras do Brasil, do Sul de Minas para baixo, foram atingidas por uma geada tão forte (conhecida como “geada negra”) que não só queimou os frutos como destruiu os pés de café. 
   
Ou seja, acabou, nas áreas afetadas, não apenas com a safra daquele ano como a dos anos seguintes.
   
Em Nova York, na sexta-feira 8 de julho, a libra-peso de café futuro para dezembro havia fechado a US$ 1,32. Na segunda, abriu a US$ 1,87, uma alta de 42%, deixando um breakaway gap gigantesco. 
   
O lucro tende a ser colossal em posições alavancadas – e o mercado de café na CSCE é alavancadíssimo: cada centavo de dólar equivale a US$ 3,75.
  
Felizmente, eu não estava short. Mas, tragicamente, também não estava long. 
   

Voltando à abertura, o mercado parou por alguns instantes em US$ 1,87, quase sem negócios. Ninguém teve coragem de “shortear”, mesmo naqueles níveis. E poucos comprados quiseram realizar lucro. 
   
Percebendo isso, comprei com sofreguidão para mim e para meus clientes. Foi comprar e correr para os abraços.
   
Praticamente sem nenhuma correção, nos dias e semanas que se seguiram, o mercado subiu até US$ 2,44. Nesse nível, começou a fraquejar e realizei o lucro de minha posição, ganhando, tal como disse no início deste texto, US$ 180 mil sem ter posto absolutamente nada, a não ser os esfíncteres na reta. Alguns dos meus clientes, com posições maiores, ganharam muito mais. Foi uma festa. 
   
Menos de um ano depois, mais precisamente no dia 30 de abril de 1995, larguei o mercado para ser escritor.
  
Posso ter feito muitas loucuras em minha vida de trader, mas a loucura final, uma loucura sensata, perdão pelo paradoxo, que valeu pelos 37 anos de trabalho.

Um abraço.

Ivan Sant'Anna

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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