Mercadores da Noite #14 - A morte da bezerra

2 de agosto de 2017
Se perder, é do jogo

Mercadores da Noite

Em meados dos anos 1980, eu morava com minha mulher, Ciça, e minha filha caçula numa casa alugada no Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. Como o proprietário estava pedindo o imóvel de volta e eu tinha dado uma enorme tacada no mercado futuro de porcos castrados (lean hogs) em Chicago, combinei com a Ciça de comprarmos (o plural aqui é uma concessão ao feminismo, pois o dinheiro vinha todo dos porquinhos, e não eram os porquinhos da poupança) uma cobertura no Alfa Barra, um condomínio em término de construção na Sernambetiba, esquina da avenida Alvorada (atual Ayrton Senna).         

Além de ser um apartamento de praia, com vista de tirar o fôlego para os 17 quilômetros de faixa de areia que vão do Jardim Oceânico ao Recreio dos Bandeirantes, o lugar tinha bons fluidos para mim. Em dezembro de 1981, quando o Alfa Barra ainda estava na fase de terraplenagem, eu, que sou piloto desde os 18 anos, caíra de avião ali, sofrendo não mais do que um arranhão no cotovelo direito.         

Pois bem, chegando ao escritório, e vitaminado com o lucro dos hogs, abri uma enorme posição vendida no mercado de Treasury Bonds. Pus um stopcurtíssimo. Este não foi atingido porque o mercado despencou após a divulgação de um housing starts (início de construção de casas) robusto pelo Departamento de Estatísticas dos Estados Unidos. Por incrível que possa parecer, meu lucro dos porquinhos dobrou.     

Quase na hora do almoço, Ciça me ligou entusiasmada. “Um espetáculo, o apê! Se a gente pudesse comprar também o do lado e juntasse os dois, teríamos uma das melhores coberturas da Barra.” 

“E por que não compra? Sabe aquela grana de ontem? Eu dobrei hoje de manhã. Compra os dois apartamentos. Estamos ricos!”   

Ela pensou em me dar uma bronca por ter arriscado o lucro da véspera, mas acabou agindo como minha primeira mulher que, em 1971, transmudou um ganho em ações na bolsa do Rio numa também cobertura, só que em Ipanema, o que foi um ótimo negócio principalmente porque o mercado caiu durante quase dez anos depois que saí de uma posição inacreditavelmente lucrativa de Petrobras ordinárias. 

Voltemos ao episódio da Barra.    

“Vou comprar agora”, disse a Ciça. “Te ligo do escritório do corretor.” Bastava eu ter ficado quieto, sair para almoçar com os amigos, encher a cara comemorando os lean hogs e os bonds, pegar um cineminha, whatever...            

Mas não.      

Eu era viciado em riscos e parti para uma terceira jogada. Antes de preencher o cheque no valor do sinal, a Ciça telefonou.    

“Sabe de uma coisa, querida?”, expliquei na maior desfaçatez. “O negócio deu pra trás. Não vai dar. Simplesmente não vai dar.”

Foram noventa segundos de mudez mútua na linha. “Mas como não vai dar? Como, Ivan?”, o tom de voz dela foi num crescendo. “COMO?” “COMO?”  

Sabendo com quem se casara, a Ciça se recuperou. “Tá bom, Ivan. Tá bom. Afinal de contas, foi você que ganhou o dinheiro. Vamos ficar só com a primeira cobertura. Antes que a gente...”          

Eu a interrompi:       

“Você não entendeu. Eu perdi os bonds e os hogs.   

O quê?”        

“Eu perdi... você sabe como são esses mercados especulativos... eu perdi os dois apartamentos. Foi numa jogada de...”       

“Não quero saber. Quero o divórcio.”          

Eu poderia ter argumentado que nós não éramos oficialmente casados, portanto, não poderíamos nos divorciar, que perdera o que eu mesmo ganhara, poderia dizer um monte de coisas. Mas preferi ficar calado.    

Não foi a primeira nem a última vez que esse tipo de coisa aconteceu, embora essa tenha sido a mais radical. E Ciça continua do meu lado. Já estamos juntos (agora inclusive no papel e em apartamento próprio) há quase 40 anos.   

Amor ao risco  

Tudo começou em maio de 1977, antes do advento Ciça. Naquela ocasião eu paguei do meu bolso os prejuízos que meus clientes tiveram em CDBs do Banco Independência – que sofreu liquidação extrajudicial – vendidos por mim. E fiquei duro feito um coco.

Sérgio Ribeiro, diretor do Banco Central, me explicara em Brasília que eu não precisava pagar nada. 

“Os papéis não foram emitidos por vocês (Fator Corretora, da qual eu era sócio) e sim pelo Independência. Legalmente, você não tem responsabilidade nenhuma. Os clientes compraram por que quiseram, porque a taxa era alta.” 

X da questão é que eu não vendera CDBs para o Bradesco, nem para o Itaú, nem para o Citibank, nem para a Grão-duquesa do Luxemburgo. Eu vendi para pessoas de meu círculo de amizades, inclusive pequenos empresários, gente que havia comprado CDBs Ivan Sant’Anna. Por isso, resolvi pagar.

Após um ano fora do mercado, tempo em que montei um quebra-cabeça de cinco mil peças, voltei para uma mesa de operações, agora como empregado.       

Imediatamente procurei meus antigos clientes para lhes oferecer papéis de renda fixa. Não consegui captar nenhum. Mal conseguia falar. Geralmente a secretária dizia que o sujeito estava em reunião.

Evidentemente, fiquei profundamente magoado. Como é que uma pessoa com quem eu agira com lealdade canina podia fugir de mim daquela maneira?  

Depois fui entendendo. Cada um deles se conscientizou que só não perdera suas economias porque o cara que lhes vendeu papéis furados pagou com o próprio bolso. E quem podia lhes garantir que Ivan Sant’Anna teria capacidade financeira para repetir a dose, fosse esse o caso?

Foi então que passei a negociar, não só para mim como para os novos clientes que captei sem maiores problemas, apenas investimentos de alto risco: shorts,futuros, calls, puts, exotismos de Nova York, Chicago, Londres e Cingapura.

Tempos memoráveis! Muita gente ganhou fortuna na soja e no café. Outros se lascaram no açúcar e na venda de calls de S&P.

Me lembro de um desses clientes, um grande tycoon da agropecuária (não, não é o Joesley Batista nem o irmão dele), que aplicou comigo 200 mil dólares com a seguinte recomendação:

“Eu não quero essa merreca de dez por cento. Isso eu ganho numa bezerra. Ou dá uma porrada, quintuplica o dinheiro, ou perde logo tudo. Se ganhar, a gente comemora em Paris. Se perder, tudo bem, é do jogo. A gente faz de conta que a bezerra teve uma cólica e morreu.”

Conheça o responsável por esta edição:

Ivan Sant'Anna

Trader e Escritor

Uma das maiores referências do mercado financeiro brasileiro, tendo participado de seu desenvolvimento desde 1958. Atuou como trader no mercado financeiro por 37 anos antes de se tornar autor de livros best-sellers como “Os Mercadores da Noite” e “1929 - Quebra da Bolsa de Nova York”. Na newsletter “Mercadores da Noite” e na coluna “Warm Up PRO”, Ivan dá sugestões de investimentos, conta histórias fascinantes e segredos de como realmente funciona o mercado.

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